3/20/2014
EQUINÓCIO DO OUTONO
Com imagens de árvores
sem folhas
o Google comemora o equinócio
de outono.
Hoje é o primeiro dia do outono
quando os dias e as noites
partem-se igualmente
e começa a primavera
no hemisfério norte.
Hoje acontece o instante
em que o Sol corta em dois
o plano do equador celeste.
Cá as folhas não caem como as de lá
e lá os pássaros não gorjeiam como os de cá.
(Ah! Gonçalves Dias!!!)
Enquanto o hemisfério sul
se prepara para um ameno
inverno
no norte, por certo, o verão virá
com muito menos
sol.
20-03-2014
(foto Natália Tinoco)
3/09/2014
3/08/2014
RECEITA FACE-TO-FACE'BOOK
Adicionar é somar algo (ou alguém)
a alguém (ou alguma coisa).
Depois precisa-se misturar, esquentar
e mexer ou bater bem.
É essencial provar para ver
se ficou boa a mistura.
Em seguida, aconselha-se soprar
e mexer para não queimar a língua.
Enfim, deve-se engolir com a devida cautela.
Mesmo assim, pode fazer mal.
Em caso de dúvida, consultar imediatamente
um especialista.
3/02/2014
PEQUENA HISTÓRIA DO LIVRO
A história do livro e das bibliotecas se confunde com a história da liberdade do homem. É um longo relato que precisaria de muitos volumes para ser contado. No entanto Luciano Canfora, em pouco mais de 100 páginas conseguiu reunir em 8 capítulos uma série de informações preciosas que validam inteiramente aquele surrado provérbio dos “pequenos frascos que contêm...etc. etc.”.
Livro e liberdade (Ateliê Editorial e Casa da Palavra, 2002, 104 p.) nos dá, após a leitura, a sensação de prazer que toda pesquisa deveria levar ao leitor, além do conhecimento.
Recorda-se com ele a obsessão de Dom Quixote em se envolver com os livros de cavalaria e depois em aventuras, influenciado pela “projeção do mundo livresco sobre o mundo real” (p. 19); as fogueiras e mortes na época da Inquisição; os antigos textos de Luciano de Samósata que contam o caso da “epidemia” que tomou conta dos espectadores após a apresentação da peça Andrômeda, por terem-na fixado demais em suas mentes; a descoberta da verdadeira identidade de Shakespeare por meio do exame de um exemplar da Bíblia deixado pelo bardo inglês e que chegou às mãos de seus biógrafos.
Mas o capítulo mais interessante é o que narra fatos relativos ao Iluminismo francês, e às figuras dos enciclopedistas Diderot e D´Alembert. Deliciamo-nos quando o autor invoca acontecimentos da época da Encyclopédie, em especial alguns que envolveram sua confecção e publicação.
O personagem de Cervantes, as perseguições a Galileu e a Giordano Bruno, o Ancien Régime e a Revolução, a censura, a queima de livros e muitos outros estão nas páginas deste livro que vai interessar ao público em geral.
Há um capítulo em que o escritor Bertolt Brecht, em poema escrito no exílio, fala da raiva de um autor ao saber que os nazistas se ‘esqueceram’ de suas obras na fogueira de livros promovida por Hitler em 1933:
“Corre à escrivaninha, cheio de ira, e escreve aos poderosos uma carta.
Queimem-me!, rabiscou, queimem-me!
Não me fizessem semelhante ofensa!
Não me deixassem de fora! Pois a verdade, eu não a disse sempre nos meus livros?
E agora me tratam com se fosse um mentiroso! Ordeno-lhes! Queimem-me!” (p. 61)
Livro e liberdade (Ateliê Editorial e Casa da Palavra, 2002, 104 p.) nos dá, após a leitura, a sensação de prazer que toda pesquisa deveria levar ao leitor, além do conhecimento.
Recorda-se com ele a obsessão de Dom Quixote em se envolver com os livros de cavalaria e depois em aventuras, influenciado pela “projeção do mundo livresco sobre o mundo real” (p. 19); as fogueiras e mortes na época da Inquisição; os antigos textos de Luciano de Samósata que contam o caso da “epidemia” que tomou conta dos espectadores após a apresentação da peça Andrômeda, por terem-na fixado demais em suas mentes; a descoberta da verdadeira identidade de Shakespeare por meio do exame de um exemplar da Bíblia deixado pelo bardo inglês e que chegou às mãos de seus biógrafos.
Mas o capítulo mais interessante é o que narra fatos relativos ao Iluminismo francês, e às figuras dos enciclopedistas Diderot e D´Alembert. Deliciamo-nos quando o autor invoca acontecimentos da época da Encyclopédie, em especial alguns que envolveram sua confecção e publicação.
O personagem de Cervantes, as perseguições a Galileu e a Giordano Bruno, o Ancien Régime e a Revolução, a censura, a queima de livros e muitos outros estão nas páginas deste livro que vai interessar ao público em geral.
Há um capítulo em que o escritor Bertolt Brecht, em poema escrito no exílio, fala da raiva de um autor ao saber que os nazistas se ‘esqueceram’ de suas obras na fogueira de livros promovida por Hitler em 1933:
“Corre à escrivaninha, cheio de ira, e escreve aos poderosos uma carta.
Queimem-me!, rabiscou, queimem-me!
Não me fizessem semelhante ofensa!
Não me deixassem de fora! Pois a verdade, eu não a disse sempre nos meus livros?
E agora me tratam com se fosse um mentiroso! Ordeno-lhes! Queimem-me!” (p. 61)
2/23/2014
A MINERAÇÃO DA ESCRITA
Será lançado em Cataguases provavelmente em maio deste ano o novo livro de Lina Tâmega Peixoto Entre desertos (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013). Mais uma obra que vai enriquecer a fortuna literária de uma autora que começou a escrever em finais da década de 1940 e ainda tem muito a buscar nas minas de sua escrita.
Ler um livro de Lina requer tempo. Não o tempo normal que se gasta para leituras cotidianas, mas um tempo para se concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do que a fruição de palavras que vão puxando palavras. Seu discurso requer um silêncio dentro desse tempo para se buscar, na memória de poemas já lidos, algo que nos favoreça e possa tirar do doce deleite de leitor desavisado.
Por outro lado, uma leitura distraída pode também trazer seus frutos, aqueles que, ao final de cada poema, sentimos quando pensamos apenas como diletantes do livro.
A partir dessas duas direções, comecei minha leitura, e deu certo mais uma vez. Fui dirigindo meu voo por penetráveis porém surpreendentes vias – que é assim o caminho dos bons livros – deparando ora com o recurso da metalinguagem, ora com a difícil música de alguns versos ou com a ligeireza do pensamento.
Neles há a predominância do gênero lírico, no entanto eles se repartem em temas cotidianos, religiosos, de amor à terra, aos amigos, à vida etc.
Em "Cone", "Hexágono", "A idade das palavras", "Caligrafia", "Atributos", está presente a metalinguagem diretamente, como nos exemplos:
"Mexo nas folhas do livro
como quem abre no corpo
a danação do espírito." (p. 35)
"Uma trepadeira de papel
arrasta-se pelas palavras
e entra pela janela do quarto." (p. 37)
No "Encontro em São Giovanni Rotondo", manifesta-se o elemento religioso, precedida pela epígrafe "Em São Padre Pio, a morte é construção". Nele, a autora vê "olhos abertos para as constelações da morte" (p. 57). O fecho do poema não é menos angustiante:
"Crespas e alvas palavras soltam-se de mim
em direção ao túmulo.
E cintilam na terra." (p. 57)
A solidão penetra no eu-lírico em "Sinto-me só", quase todo ele construído, filosoficamente em metáforas interrogativas, mas iniciado com exigências de quem assedia a poeta:
"Pediram-me chuva no deserto
como se eu fosse um seio
a amamentar as águas." (p. 55)
"Cobrir os ombros com altas estrelas
amassadas pelo azul que o céu sustenta?
Escavar o coração para vê-lo
enlutado de rosas
e rosário de vozes enterradas vivas? (p. 55)
Entretanto as vozes da poesia de Lina encontram mais eco nas coisas da natureza, no mundo físico que contempla, para dali tirar o pensamento mais denso, a lição da hora amarga ou do momento feliz, na "lida vã de limpar o tempo" (p. 26):
"lavo e enxáguo minha vida.
Amontoadas no sol
as montanhas de Minas erguem-se
em panelas, chaleiras e xícaras." (p. 27)
Tenho muito mais a falar sobre esse livro, mas é preciso deixar algo ao leitor para encontrar neste Entre desertos – ótimo título a nos acenar para horizontes poéticos desta poesia maior com que Lina nos brinda de tempos em tempos. Vale transcrever os versos em que mais uma vez fala de sua terra:
"Gotas de asas revoam
no manso curso do rio Pomba
como afluentes do pássaro." (p. 22)
(23-02-2014)
2/16/2014
A MORTE DIRIGÍVEL
Drones são naves solitárias
que seguem um remoto comando
e, como folhas ao vento
ou como aves sem bando,
viajam no silêncio e na sombra.
Em seus bicos, trazem inscrita
a morte secreta e dirigível
que localiza em voo sinistro,
por um toque celular,
alguém que esteja no deserto,
no mar ou no indizível.
Um drone corta o espaço
em fatias de simples decupagens,
como se a viagem fosse apenas
pelo prazer do ar em suas penas.
Noturnos, eles traçam um voo cego
para pegar de surpresa o inimigo
ou qualquer um que desafie
o Império, o poder, o ego.
Voltam depois, na mesma noite-asilo
de que saíram, pois são velozes
vorazes assassinos do ar,
e, como estes, vão dormir tranquilos
nos hangares da inconsciência
que lhes tirou a inocência.
11-02-2014
2/10/2014
O PRESENTE QUE VEIO DA GRÉCIA
Não é segredo para ninguém o que a Grécia representou para o mundo – principalmente para o Ocidente – em termos de civilização e cultura. Sua influência através dos tempos deu-se de maneira intensa e multiforme, tanto na literatura como na história, na política, na filosofia, no teatro e até nos esportes.
Foi ali que beberam Shakespeare para suas tragédias, Camões para sua épica, e até Freud, que buscou na nomenclatura e no drama situações para suas descobertas no terreno científico, além de muitos outros.
Nessa longa tradição, a figura inaugural foi Homero que no século VIII A.C. criou a poesia épica e com ela as magníficas Ilíada e Odisseia. Imagine-se a existência desses dois monumentos da literatura 800 anos antes da era cristã! São obras clássicas inspiradoras de toda uma linha de produção que veio a se cristalizar no Renascimento, já no século XVI de nossa era.
Depois da época arcaica – a de Homero e Hesíodo – sucedeu-lhe a Idade Clássica, representada pelos mestres da filosofia, do teatro e da história cujo apogeu aconteceu nos séculos IV e V A.C. A filosofia, centrada na tríade composta por Sócrates, Platão e Aristóteles, legou à humanidade a base por meio da qual se iniciam, até hoje, os estudos filosóficos.
O mundo grego, fundamentado no debate e na variedade de ideias, também o era nas guerras, tema consagrado pelos primeiros historiadores de que se tem notícia: Heródoto, denominado o pai da história, e Tucídides.
No período entre os séculos VI e V A.C., com o objetivo inicial de homenagear os seus deuses e antepassados, inaugurou-se a arte teatral, firmada mais tarde com os festivais dramáticos. Considerado também um evento cívico, o teatro teve em Sófocles (Édipo-Rei), Eurípedes (Medeia), Ésquilo (Os sete contra Tebas) e Aristófanes (Lisístrata) os seus expoentes.
(texto já publicado no jornal Cataguases)
2/08/2014
DOMINGO DE LEITURA
Há algumas décadas ele me acenava da estante. É desses livros que vamos deixando para depois, devido a leituras prioritárias determinadas pela necessidade no trabalho e/ou nos estudos. Recentemente mandei-o para a encadernação e agora voltou em uma cor bege, mantidas, no entanto, no seu interior, a capa e as características que me atraíram desde 1959: Adeus, Mr. Chips (Porto Alegre: Editora Globo, 4ª ed., 1959, 132 pp.) , uma pequena novela escrita por James Hilton.
Chegava a sua vez. O domingo não me prometia nada e, mais do que uma leitura, um entretenimento poderia mudar as coisas, como efetivamente aconteceu.
Vale uma pequena introdução sobre o autor.
Escritor do século passado, Hilton (1900-1954) nasceu na Inglaterra, em Leigh (Lancashire) e morreu nos Estados Unidos, em Long Beach (Califórnia).
Começou sua carreira de ficcionista em 1920 com o romance Catherine herserf, mas só ficou famoso com Horizonte perdido (1933) – um best-seller na época – e com Adeus, Mr. Chips (1934). No ano seguinte, Hilton, com poucas malas e muita coragem, partiu para Hollywood, onde, até o final da vida, fez carreira como roteirista e adaptador de seus livros e de outros escritores para o cinema, com grande sucesso.
Voltando ao pequeno volume que tenho em mãos: são 18 capítulos curtos em letras grandes, formato pocket, 132 páginas. Acabei não muito rápido, mais para prolongar o prazer pelo resto da tarde na história de um professor que recorda sua vida numa escola inglesa – Brookfield – de fins do século XIX e princípios do XX.
O narrador, em terceira pessoa e com mão extremamente leve e hábil, conta a história do professor Chipping, apelidado Mr. Chips, desde que começou a lecionar. As conversas com a senhora Wickett, em cuja casa alugava um dos quartos, o contato com os alunos, o humor que desfiava em todas as ocasiões, uma vida enfim que passava como um filme, numa narrativa que parecia a princípio simples demais e que na sua inteireza se mostrou tão emocionante quanto criativa pela maestria do saber narrar.
Até o capítulo IV tudo transcorre na atmosfera da existência comum e enfadonha de um conformado solteirão que, “como ele próprio dizia, não fazia caso das mulheres, nunca se sentia bem ou à vontade na companhia delas”. (p. 27) Mas, nessa altura da novela, circunstancialmente, irrompe um personagem, uma certa Miss Katherine Bridges, “de olhos azuis e fulgurantes, faces pintalgadas de sardas e cabelos lisos cor de palha” (p. 29). Sua presença marcante e suas ideias avançadas não demoram a transformar o professor, eles se apaixonam e acabam se casando.
No flash-back do velho professor, que constitui a base da narrativa, esse fato parece ter determinado a mudança em suas atitudes, e estas, mesmo após a morte prematura de Katherine, passaram a compor, através dos anos, a mística de homem compreensivo, solidário e inovador em que se transformou o professor Chips na escola.
O desfecho da novela assinala o ‘adeus’ de um aluno a Mr. Chips e o anúncio de sua morte que consternou toda a comunidade, como foi consignado no discurso de despedida de Cartwright: “Brookfield jamais esquecerá essa figura querida.” (p. 132).
O escritor James Hilton
Chegava a sua vez. O domingo não me prometia nada e, mais do que uma leitura, um entretenimento poderia mudar as coisas, como efetivamente aconteceu.
Vale uma pequena introdução sobre o autor.
Escritor do século passado, Hilton (1900-1954) nasceu na Inglaterra, em Leigh (Lancashire) e morreu nos Estados Unidos, em Long Beach (Califórnia).
Começou sua carreira de ficcionista em 1920 com o romance Catherine herserf, mas só ficou famoso com Horizonte perdido (1933) – um best-seller na época – e com Adeus, Mr. Chips (1934). No ano seguinte, Hilton, com poucas malas e muita coragem, partiu para Hollywood, onde, até o final da vida, fez carreira como roteirista e adaptador de seus livros e de outros escritores para o cinema, com grande sucesso.
Voltando ao pequeno volume que tenho em mãos: são 18 capítulos curtos em letras grandes, formato pocket, 132 páginas. Acabei não muito rápido, mais para prolongar o prazer pelo resto da tarde na história de um professor que recorda sua vida numa escola inglesa – Brookfield – de fins do século XIX e princípios do XX.
O narrador, em terceira pessoa e com mão extremamente leve e hábil, conta a história do professor Chipping, apelidado Mr. Chips, desde que começou a lecionar. As conversas com a senhora Wickett, em cuja casa alugava um dos quartos, o contato com os alunos, o humor que desfiava em todas as ocasiões, uma vida enfim que passava como um filme, numa narrativa que parecia a princípio simples demais e que na sua inteireza se mostrou tão emocionante quanto criativa pela maestria do saber narrar.
Até o capítulo IV tudo transcorre na atmosfera da existência comum e enfadonha de um conformado solteirão que, “como ele próprio dizia, não fazia caso das mulheres, nunca se sentia bem ou à vontade na companhia delas”. (p. 27) Mas, nessa altura da novela, circunstancialmente, irrompe um personagem, uma certa Miss Katherine Bridges, “de olhos azuis e fulgurantes, faces pintalgadas de sardas e cabelos lisos cor de palha” (p. 29). Sua presença marcante e suas ideias avançadas não demoram a transformar o professor, eles se apaixonam e acabam se casando.
No flash-back do velho professor, que constitui a base da narrativa, esse fato parece ter determinado a mudança em suas atitudes, e estas, mesmo após a morte prematura de Katherine, passaram a compor, através dos anos, a mística de homem compreensivo, solidário e inovador em que se transformou o professor Chips na escola.
O desfecho da novela assinala o ‘adeus’ de um aluno a Mr. Chips e o anúncio de sua morte que consternou toda a comunidade, como foi consignado no discurso de despedida de Cartwright: “Brookfield jamais esquecerá essa figura querida.” (p. 132).
O escritor James Hilton
2/07/2014
LEITURA DE POESIA
A leitura de uma obra literária – em especial quando se trata de poesia – apresenta à primeira vista dificuldades e limites a quem se aventura por ela. E não raro as pessoas se sentem frustradas, perdem-se no caminho e interrompem o ato de ler. “Trouxeste a chave?”, perguntaria o poeta Drummond, em sua ‘procura da poesia’.
O poeta-crítico José Paulo Paes, para quem o problema está relacionado a alguns pré-requisitos da parte do leitor, ressalta, em uma entrevista dada à revista Morcego Cego, a necessidade de uma passagem preliminar, na infância e na adolescência, pela chamada leitura de entretenimento. Por exemplo, a obra de Monteiro Lobato e outras que a escola moderna praticamente abandonou.
José Paulo, nessa mesma entrevista, fala de um comportamento mais produtivo para a poesia, salientando que é essencial “uma atenção mais distraída” a quem queira se aproximar do texto poético. E aconselha: “Você tem que se deixar penetrar pela música do poema e por via dessa música chegará à compreensão”(1).
Só após o entendimento “intuitivo”, o leitor estará pronto para tentar uma análise mais técnica e assim chegar à estrutura de um poema. Nessa segunda fase, o conhecimento de teoria literária e de mecanismos críticos para se penetrar na complexidade que toda obra apresenta levará o leitor a uma etapa mais avançada e até fruitiva.
Há algum tempo foram publicados dois livros que podem ajudar o estudioso do assunto. Leitura de poesia, organizado por Alfredo Bosi (Editora Ática), e Poemas para crianças, preparado por Hélder Pinheiro (Livraria Duas Cidades). Ambos – dentro de sua temática e perspectiva particular – reúnem especialistas na leitura crítica e na avaliação de textos literários, e podem nos proporcionar momentos de enriquecimento cultural que nos permitirão penetrar cada vez mais intensamente no mundo da poesia.
1 SANCHES, Miguel. Poética do fronteiriço. In: Rev. Morcego Cego, Florianópolis, 1996, p. 95.
O poeta-crítico José Paulo Paes, para quem o problema está relacionado a alguns pré-requisitos da parte do leitor, ressalta, em uma entrevista dada à revista Morcego Cego, a necessidade de uma passagem preliminar, na infância e na adolescência, pela chamada leitura de entretenimento. Por exemplo, a obra de Monteiro Lobato e outras que a escola moderna praticamente abandonou.
José Paulo, nessa mesma entrevista, fala de um comportamento mais produtivo para a poesia, salientando que é essencial “uma atenção mais distraída” a quem queira se aproximar do texto poético. E aconselha: “Você tem que se deixar penetrar pela música do poema e por via dessa música chegará à compreensão”(1).
Só após o entendimento “intuitivo”, o leitor estará pronto para tentar uma análise mais técnica e assim chegar à estrutura de um poema. Nessa segunda fase, o conhecimento de teoria literária e de mecanismos críticos para se penetrar na complexidade que toda obra apresenta levará o leitor a uma etapa mais avançada e até fruitiva.
Há algum tempo foram publicados dois livros que podem ajudar o estudioso do assunto. Leitura de poesia, organizado por Alfredo Bosi (Editora Ática), e Poemas para crianças, preparado por Hélder Pinheiro (Livraria Duas Cidades). Ambos – dentro de sua temática e perspectiva particular – reúnem especialistas na leitura crítica e na avaliação de textos literários, e podem nos proporcionar momentos de enriquecimento cultural que nos permitirão penetrar cada vez mais intensamente no mundo da poesia.
1 SANCHES, Miguel. Poética do fronteiriço. In: Rev. Morcego Cego, Florianópolis, 1996, p. 95.
2/02/2014
A MULHER NO SÉCULO DAS LUZES
Émilie Émilie - a ambição feminina no século XVIII
Elisabeth Badinter
Trad. Celeste Marcondes
Paz e Terra/Discurso Editorial/Duna Dueto.
O que mais se identifica com o século XVIII europeu do que a máxima de Hegel: “Nada de grande se faz jamais sem paixão”? Assim, tudo que, em tempos passados, representava equilíbrio e indiferença às vicissitudes da vida foi afastado em prol de uma nova moda que era viver sob a ótica do amor e das emoções.
O Setecentos trouxe não só o progresso das ciências, a Revolução Industrial, a Ilustração e a Encyclopédie, como o nascimento do romance como gênero literário popular em substituição às liras pastoris, epopeias e histórias de feitos virtuosos.
Por outro lado, o poder dos reis ainda no auge e a aristocracia brilhando nos salões retratam tanto esse século quanto o início de uma classe em ascensão: a dos burgueses.
Como tempero a essas transformações que iriam alterar o curso da história, a vida de duas mulheres notáveis – as primeiras pensadoras – mexe com a nossa curiosidade ao ler a obra de Elisabeth Badinter Émilie Émilie - a ambição feminina no século XVIII, edição tríplice da Paz e Terra, Discurso Editorial e Duna Dueto.
Tendo como pano de fundo o Século das Luzes, a história de duas damas da aristocracia francesa – Madame de Châtelet e Madame d’Epinay, ou simplesmente Émilie e Louise – é magnificamente descrita no ambiente de sedução e de lances de fingimento e coragem na Corte.
A historiadora francesa Elisabeth Badinter deu ao seu trabalho, por um lado características de pesquisa séria, por outro uma tonalidade romanesca que o torna de sabor inigualável para leitores exigentes de todas as idades e gostos. Ler este livro é penetrar nos salões imperiais dos tempos do Iluminismo.
(publicado no jornal "Cataguases"
1/28/2014
JOSÉ EMÍLIO PACHECO (1939-2014)
OUTRIDADE, OUTRA IDADE
O que pensaria de mim se eu entrasse neste momento
e me encontrasse onde estou,
como sou,
aquele que fui aos vinte anos?
ALTA TRAIÇÃO
Não amo minha pátria.
Seu fulgor abstrato é inacessível.
Mas (ainda que soe mal)
daria a vida
por dez lugares seus,
certa gente,
portos, bosques de pinhos,
fortalezas,
uma cidade desfeita,
cinza, monstruosa,
várias figuras de sua história,
montanhas
e três ou quatro rios.
1/27/2014
O MUNDO FOTO/GEO/GRÁFICO DAS GERAES
Será lançado no dia 11 de fevereiro, em Belo
Horizonte (e depois em Cataguases), o livro Beirais
das Gerais, com fotografia de Henrique Frade e texto de Leonardo Magalhães
Gomes.
Trata-se de um livro de arte fotográfica, com 319
páginas, em formato grande, capa dura e todo em cores e papel “couché”, e que
impressiona logo à primeira vista pela qualidade das imagens e da editoração.
Beirais das
Gerais é um retrato de Minas em todas as suas regiões, por isso está
dividido em cinco partes: a Zona da Mata e fronteira com o norte fluminense; a
divisa de Minas com o Espírito Santo; o encontro do estado com a Bahia; a
fronteira oeste; e São Paulo. A etapa final registra o retorno ao Rio de
Janeiro.
Cada parte da obra é antecedida por um mapa
detalhado das vias percorridas, seguido por um texto bem cuidado onde se narra
o roteiro da viagem e se anotam as características e o significado dos
topônimos e gentílicos encontrados, além de outras curiosidades.
Entretanto o que o leitor poderá captar ali de mais
significativo, logo após as primeiras páginas visualizadas, se estendendo por
todas as outras, é o enfoque principal da obra. A lente de Henrique Frade busca
as pessoas, os caminhos, as casas e o ambiente de simplicidade e pobreza do
mineiro interiorano e roceiro, bem como sua família, seu trabalho, para compor
a paisagem rica e cotidiana de nossa terra. Ali não se verá a urbe com seus
automóveis e prédios de apartamentos.
A visão da câmera é realista, porém nunca exacerbada
em retratos cruéis ou hiperrealistas, e sim naquilo que ela pode devolver – às
vezes em crítica e ironia – do que captou com tanta naturalidade e precisão.
Em meio a uma ambientação tipicamente mineira, nos
são mostrados a estrada rural do Rio Pardo, as arvorezinhas do povoado de
Araçaji, os cavaleiros de Almenara e Salto da Divisa, a estradinha de Janaúba,
o pequeno comércio de Porteirinha, balseiros e crianças do São Francisco,
moradores simples de São João das Missões, o casario de Januária, as igrejinhas
de Riacho da Cruz e muitas outras.
Uma emocionante viagem que vale a pena fazer,
página a página, e o leitor pode até se surpreender ao chegar às “locações”
percorridas por Guimarães Rosa para escrever o seu Grande sertão: veredas, e quem sabe encontrar por lá o vaqueiro
Riobaldo e sua Diadorim, o bandido Hermógenes, a noivinha Leonilda ou o temido chefão
Cara-de-Bronze – personagens tão ficcionais quanto reais do maior romance
escrito sobre o sertão de Minas Gerais.
1/22/2014
1/20/2014
1/18/2014
AS HEROÍNAS FRÍVOLAS DE MACHADO DE ASSIS

O sonho, a idealização e (por que
não dizer?) a frivolidade dos personagens femininos sempre foram ingredientes
do Romantismo nos séculos XVIII e início do XIX. É só repassar as páginas de
Alencar, Macedo, Bernardo Guimarães – para ficar só no Brasil –, ou folhear os
romances de Alexandre Dumas, Camilo Castelo Branco, Dickens – fora do país – para confirmar
isso.
Aos heróis aventureiros, corajosos,
perfeitos, correspondiam heroínas transpassadas de docilidade, beleza e
ansiosas pelo cavaleiro (ou cavalheiro) gentil e destemido que lhes arrebatasse
a mão.
No Realismo, porém, essa
caracterização feminina 'escorreu' para a frivolidade, funcionando para os escritores como crítica a um status
social que não seria apenas a um posicionamento de inércia diante do mundo
em evolução. A mulher passou a protagonista, e com ela o cultivo de uma personalidade fútil penetrou na temática dos melhores romances
da época como Madame Bovary, Dom Casmurro
e O primo Basílio.
Fútil, leviana, superficial, a
mulher frívola se caracterizou como personagem realista que se coloca no meio da cena ficcional de maneira diferente do que ocorrera entre os românticos.
Batendo firme na moral burguesa, os romancistas realistas, por diversas vezes, mostram a personagem feminina num quadro de traição conjugal e no vazio de um cotidiano repetitivo e sem finalidade; ela que antes já havia sido vítima
de um casamento por conveniência tratado pelos pais com a família do noivo, sem o seu consentimento.
Machado não poderia "passar
batido" sem aproveitar esse modelo da época. Em seus romances,
isso fica evidente na personalidade e no 'comportamento' de Capitu, Virgília e Sofia. E nos contos, é tão costumeira a situação que os exemplos podem ser coletados
facilmente, em meio à crítica à sociedade burguesa.
No conto "O segredo de
Augusta", logo na 2ª página, a protagonista se revela na voz do narrador:
"Augusta vestia com suprema elegância; gastava muito, é verdade; mas
aproveitava bem as enormes despesas, se acaso isso é aproveitá-las"
(ASSIS, 1959, p. 85).
É comum encontrar viúvas bonitas na ficção
machadiana, invariavelmente marcadas pelo caráter frívolo. Mariana é uma delas,
em "Três consequências": "Uma prima levou-a a uma das melhores
modistas. D. Mariana disse-lhe o que queria: – sortir-se de vestidos escuros,
apropriados ao estado de viúva. Escolheu vinte, sendo dois inteiramente pretos,
doze escuros e simples para uso de casa, e seis mais enfeitados. Escolheu
também chapéu noutra casa." (Idem, s.d., p. 208)
Em "O caso do Romualdo",
Carlota e D. Maria eram amigas e costumavam passear pela rua do Ouvidor para
observar o movimento e fazer compras. Esta cena ilustra o tema: "D. Maria
foi vestir-se e daí a pouco saíram ambas. Vieram à rua do Ouvidor, onde não foi
difícil esquecer o assunto, tudo acabou ou ficou adiado. Contribuiu para isso o
baile da véspera; a viúva alcançou finalmente que falassem das impressões
trazidas, falaram por muito tempo, esquecidas do resto, e para não voltar logo
para a casa, foram comprar alguma coisa a uma loja. Que coisa? Nunca se soube
claramente o que foi; há razões para crer que foi um metro de fita, outros
dizem que dois, alguns opinam por uma dúzia de lenços. O único ponto liquidado
é que estiveram na loja até quatro horas. (Idem, s.d., p. 160)
O tempero, porém, usado pelo autor
para chamar a atenção para o tema das mulheres frívolas é visível. Mais uma
vez a ironia bem conduzida por Machado vai direto ao alvo e torna a
expressividade do seu texto tão relevante a ponto de apresentar a
ficção de qualidade mais completa que a literatura brasileira já produziu.
Referências
bibliográficas:
ASSIS,
Machado de. O caso do Romualdo. In:______. Relíquias
de casa velha I. 3 vol. São Paulo: Edigraf, s.d.
______.
O segredo de Augusta. In: ______. Contos
fluminenses I. 3 vol. São Paulo: Clube do livro, 1959.
______.
Três consequências. In: ______. Relíquias
de casa velha II. 3 vol. São Paulo: Edigraf, s.d.igraf, s.d.
1/15/2014
AO MESTRE, COM ADMIRAÇÃO (repostagem)
(Transcrição de uma crônica que escrevi para o jornal Cataguases, quando da inauguração, no Caic, da Biblioteca José da Silva Gradim) (na foto, Filomena, Dirce, eu, Imaculada e Ana Maria):
A noite prometia tudo, mas era destinada a poucos. Ou poucos puderam escolhê-la, porque no fundo de seu mistério havia um mestre e sua biblioteca. Estrelas tinham cunhado para si e para ele uma luz própria, especial.
O Caic, colocado estrategicamente no morro, parecia uma esfinge à espera de todos – os convidados. Nos olhos da diretora havia um novo brilho: Filomena sorria e aguardava a hora de repartir o segredo de tanto tempo – a Biblioteca José da Silva Gradim.
Esperávamos todos e era como não se esperasse ninguém. Contudo, mais uma vez o mestre se fez presente e os primeiros faróis e motores vazaram o silêncio e o breu, para se transformar em números de amigos, professores e aficcionados da língua e da literatura luso-brasileira.
Pequenos grupos começaram a se esquentar da noite fria na conversa animada. Célio e Ana Maria, Dirce, professor Luís, Imaculada, Betinha e Pedro Mendes, Hélia, Maria Lúcia e Paulo Miranda, Vasco e Filomena, eu e Sonia e outros ex-alunos, colegas e admiradores. O assunto rolava um só: o ineditismo e a raridade da homenagem. Finalmente, um evento cultural no sentido mais justo e profundo que se poderia imaginar em Cataguases.
Chegava a hora e subimos todos para o primeiro andar do Caic. Corredores e portas levavam a uma nova ordem de coisas onde a clareza e o despojamento incitam ao estudo e aos objetivos. No último vão, enfim, a biblioteca. Na parede de frente, o pôster da página inteira do Cataguases ampliada, onde se traçava o perfil do professor. Dirce, emocionada, descerra a placa em bronze: Biblioteca Professor J. S. Gradim. Filomena marca uma vitória na cultura cataguasense.
Saudações e apresentações. Célio Lacerda custa a colocar a voz no lugar, mas, quando consegue, as palavras são firmes, fiéis, quase perfeitas, daquelas que qualquer um de nós gostaria de assinar em baixo. O ambiente era gradiniano, em cor e forma, e em fundo também.
Lá fora o ar era tão frio que constrastava com o interior do prédio e de todos. As pessoas pareciam como que escolhidas para estar ali. No céu de junho, poucas estrelas arriscavam um brilho e lá dentro apenas um vulto parecia passear entre nós e os livros, lembrando os textos e tempos de Garret, Herculano, Machado e Camões – o professor Gradim e sua poderosa voz ressoando verbos, declinações, supinos e particípios do futuro, poemas e contos fantásticos.
1/14/2014
MUITO ALÉM DA 'CORTINA DE FERRO'
Hoje poucos devem-se lembrar da expressão “Cortina de Ferro”, utilizada pelo Ocidente para caracterizar negativamente o bloco dos países socialistas da Europa Oriental, nos tempos da Guerra Fria que envolveu Estados Unidos e Rússia (ex-União Soviética). Ela indicava uma espécie de separação virtual entre o mundo “livre”, capitalista, e as nações “comunistas”. O próprio significado da expressão já denota o grau de mistério e terror que a propaganda anticomunista procurava infundir aos povos subdesenvolvidos (em especial) com relação aos países socialistas.Foi nessa época –1955 – que Francisco Inácio Peixoto e sua mulher dona Amelinha fizeram uma viagem à antiga União Soviética e à Tchecoslováquia, e na volta não puderam passar pelos Estados Unidos, devido ao visto carimbado em seus passaportes pelos ‘comunistas’. Foi necessária essa introdução, especialmente para os mais jovens, que não viveram os anos da Guerra Fria.Dessa viagem resultou o livro "Passaporte Proibido" (Rio de Janeiro: Simões, 1960), escrito e publicado cinco anos depois por Francisco Inácio, e um dos melhores roteiros de viagens que já li. Através dele, o leitor conhece a paisagem e algo do povo russo, dos "espiões" nas esquinas moscovitas à comida, das viagens de trem à amabilidade e aos hábitos das pessoas que o casal encontrou.Mas, além de tudo, o ponto alto do livro é a sua concretização como texto. Fica-nos sempre na lembrança a imagem daqueles livros de que não se pode retirar ou acrescentar uma linha sequer. Um texto essencialmente poético, onde fina ironia faz compasso com a divisão perfeita dos capítulos e os diálogos com as observações sempre pertinentes sobre o que o autor viu e anotou. A leitura do livro, prazerosa e enriquecedora, nos revela não só a terra soviética e a tcheca, como também a finura de um exímio estilista.No primeiro fragmento selecionado, a descrição rápida do hotel em Praga deixa entrever a ironia com que o autor responde aos apelos da antipropaganda disseminada pelo ocidente contra os ‘inimigos’ do leste: “No Hotel Alcron, a tarde é triste. No grande salão sombrio, há mulheres suspeitas e, positivamente, conspiradores internacionais que aumentam nossa emoção." (p.10)No capítulo “No futebol, com Ludmila”, quando vão a um estádio para ver um jogo, a frase descreve o amor pela paz universal, sintetizada na palavra “Mir”, que em russo significa “Paz”: "(...)desfraldando bandeiras e flâmulas. Numa delas, em muitas delas, em letras vermelhas, a palavra nunca esquecida: "Mir". Paz, asas."(p. 60)Em visita a uma adega e na recepção calorosa que receberam: "Mais safras houvera, mais prováramos, pois a adega é fria; a hospitalidade, antiga; as obras, demoradas e o vinho, um veludo". (p. 158) "Dos sorrisos, entretanto, optamos por aquele que umedece negros olhos caucasianos."(p. 76)No retorno à Tchecoslováquia, Peixoto narra, em Bratislava, o jantar com o escritor Wladmir Olerini, e, depois das conversas iniciais à mesa, aproveita para fechar o diálogo com esta observação: “Quanto ao Danúbio, já dormia. Tarde, não há mais nada a fazer, senão jantar e dormir também.” (p. 165)Na despedida de Bratislava, volta a referência ao Danúbio: “Primeira descoberta: o Danúbio não é azul. Suas águas são cinzentas, como se rolassem num leito de tabatinga.” (p. 171)O turista, muito longe da terra natal, descobre no comércio a lembrança brasileira, em pequeno capítulo denominado “Saudade, apenas”: “A mercearia exibe, na vitrina, os dois saquinhos de café com as indicações ‘Minas’ e ‘Santos’, trazendo secretas e profundas nostalgias às almas dos turistas.”(p. 14)A breve visita a Praga, na atual República Tcheca revela o cumprimento carinhoso à velha cidade: “Estes, a quem ausência e regresso repetidos já conferem sentimentos de cidadania, te cumprimentam: – Bom dia, cem torres! Moldau, bom dia! É bom volver à tua primavera, Praga, reconhecê-la, ainda que se esconda na negrura e solidão de tuas noites.” (p. 175)
São belas e impressionistas as descrições que o escritor faz da cidade de Moscou e do cotidiano vivido lá no meio do povo, em seu primeiro dia de visita: "(...) Atravessamos a Praça Vermelha e contornamos as muralhas do Kremlim, até onde se avista o plácido Moskva, com suas ilhotas flutuantes de neve suja, descendo na correnteza. Na avenida marginal, as crianças do jardim da infância passam por nós como bichinhos desconfiados. Mais além, a fileira de ferroviários que se formou para a visita ao Kremlim, nem se dá conta de que invejamos sua alegria palreira e ingênua. As mulheres, de lenços na cabeça, riem com dentes de ouro, os homens de boné riem. (...)” (p. 41-2)Passeando pelas ruas, em liberdade, sentindo-se um ‘fora-da-lei’, viu um povo tranquilo e receptivo: "Havia uma semana que estávamos em Moscou, num 'à vontade' de colegiais em férias. Às vezes desacompanhados de nossos intérpretes, íamos à toa pelas ruas. Desapontava-nos o fato de não estarmos sendo seguidos (tanto pode a contrapropaganda sistemática!). Era, pois, sempre com uma ligeira emoção de out-laws, de quem se lançou em perigosa aventura, que saíamos para esses passeios solitários. E se nos sovertêssemos de um momento para outro, raptados pelos ferozes organismos da polícia soviética, suspeitosos de nosso caderninho de notas e de nossa curiosidade peripatética? Mas, não houve espiões nas manhãs e nas tardes moscovitas. O povo, esse, se mostrava pacato e, sempre que com ele nos pusemos em contato, hospitaleiro e acolhedor. Sozinhos andamos e sozinhos chegamos a comprar (milagres da mais pura mímica!) uma canção que nos enlevara, um par de meias e um colorido gorro do Usbequistão.” (p. 64-5)No trem noturno para Leningrado, em companhia de duas russas que se tornaram amigas, Francisco e Amelinha viveram novas emoções: "Vera e Ludmila partiram conosco para Leningrado. Deixaram-nos à porta da cabina, onde ainda levamos tempo parolando, e já o trem andava a quilômetros de Moscou quando nos separamos para ir dormir. Mas, não dormimos logo, que é sempre triste a partida, mesmo sem termos de quem nos despedir, e a noite é fermento para cismas doidas. Quando estas crescem, assim, em terra estranha, mais triste é o contraponto das rodas rodando nos trilhos e mais pungente o apito da locomotiva. Apagamos a luz do abajur e só ficou o rádio tocando baixinho, no escuro, uma perdida canção.Acordamos com um hino, quando já era madrugada lá fora, nas bétulas e nos pinheiros, nas estepes regadas de orvalho. Que riacho é este? Duas mulheres apanham água na bica, uma cerca ao fundo, um homem olhando o trem passar, três casinhas na estrada tortuosa, três crianças, o cachorro latindo, a estação vazia. Por que esta paisagem incaracterística, e não outra, permanece indelével na memória?Vera bate à porta, trazendo-nos um embrulho de sanduíches e laranjas. No trem noturno só servem o copo de chá quente, que a camareira nos oferece na bandeja, com os cubos de açúcar. Outra vez: próvida e previdente Vera!” (p. 110-1)Finalizamos com o capítulo denominado “Despedida e regresso”, que retrata o fim da viagem, de rápida e rara beleza plástica, fechando numa tomada tipicamente cinematográfica: "(...)Para acalmar a nossa excitação, servem-nos carne defumada com knedlik. E bebemos, de Pilsen, a subornadora Prazdroj.No dia seguinte partimos. Da janela do trem que nos levaria a Viena, vamos vendo, cada vez mais embaciados, os vultos de Jitika, de Frantisek, de Gabriel, que nos acenam da plataforma. Uma curva súbita, e os três desaparecem. Para sempre.” (p. 178)Há muitas outras passagens interessantes no livro, que fala de economia, de política, de literatura, sempre com um tempero de humor e lirismo, mas, de tudo isso, preferimos os fragmentos que extraímos do texto e as impressões que ficaram desse vivo retrato de dois povos admiráveis.(Na foto, Francisco e Amelinha, cercados de curiosos na fria manhã em Moscou)
1/09/2014
OS CONTOS DE FADAS E O UNIVERSO FEMININO
No Brasil,
ainda são poucos os estudos sobre o fenômeno das fábulas e dos contos de fadas
que habitam até hoje os sonhos de crianças de todas as idades.
Rico manancial
do nosso imaginário, as histórias escritas por Perrault, Andersen, os irmãos
Grimm, La Fontaine
e outros tiveram em Esopo um pioneiro na antiguidade grega.
Histórias como “A
Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Cinderela”, “Pele de Asno”, “Barba
Azul”, “Branca de Neve”, “João e Maria”, além de serem tradicionalmente
femininas, devem sua permanência, através dos tempos, às mulheres contadoras de
histórias.
Esopo – um
grego natural da Frígia, que viveu no século VI antes de Cristo – criou inúmeras
fábulas que chegaram até nós pela tradição oral.
Nos fins do
século XVII, Charles Perrault, pesquisando contos da Idade Média, retirou-lhes
o conteúdo campesino-vulgar e deu-lhes um sabor mais refinado para o deleite da
aristocracia francesa. Na Alemanha, os irmãos Grimm, no século XIX, passaram nova
peneira e afastaram dos contos os sinais mais fortes de sexualidade, acentuando,
porém, o castigo para os malfeitores.
Com o tempo, os
contos foram passando de escritor para escritor e perdendo sua marca de
autoria, a ponto de Walt Disney, no século XX, ‘reescrevê-los’ para o cinema, e
tornar-se, para o grande público, seu único e verdadeiro autor.
Outras versões cinematográficas
foram produzidas como “My fair lady” e “Uma linda mulher” que fizeram de Audrey
Hepburn e Julia Roberts cinderelas da era moderna, e alcançando grande sucesso
nas telas. Glamurizados por Hollywood, entretanto, esses filmes são versões
adocicadas das velhas estórias, que eram quase sempre carregadas de maldade e
erotismo, razão pela qual chegaram a ser condenadas por educadores, que viam
nelas uma influência negativa para a juventude.
Contemporaneamente,
sabe-se que os jovens se preparam para a vida muito mais cedo do que antes, e
que o sofrimento e as dificuldades são verdadeiramente a ponte para a sua
transformação e progresso pessoal.
Algumas dessas
informações e outras bastante interessantes estão no livro Fiando palha, tecendo ouro –
o que os contos de fada revelam sobre as transformações na vida da mulher, de
Jean Gould (Editora Rocco), que aconselho a todos os leitores – especialmente
as mulheres –, pela consistente e criativa interpretação dos contos de fadas e
de sua relação com o universo feminino desenvolvida pela autora.
1/02/2014
DUAS ESTÓRIAS, UM TEMA
Um dos temas mais abordados
por Machado de Assis é o da busca da perfeição humana. Vários de seus contos
tratam dessa temática, cada um à sua maneira.
Pois bem, ao ler outro
dia "O destinado", do 2º volume da antologia Relíquias de casa velha (publicado em 1906 e em A Estação, em 1883), lembrei-me
imediatamente de outra narrativa – "Trio em lá menor" (Gazeta de Notícias, 1886, e em Várias histórias, 1895), obra também antológica
do autor.
As duas estórias, ainda
que diferentes no enredo e tudo o mais, caminham juntas.
Em "O
destinado", a protagonista é a moça Delfina e o conto tem a valsa como
fundo musical, pois a cena inicial se dá num baile, que lhe propicia conhecer
dois pretendentes: o bacharel Soares e o bacharel Antunes, com quem dança uma
quadrilha e uma valsa, respectivamente.
A onisciência do
narrador em 3ª pessoa leva as observações e impressões de Delfina para o texto
como se fossem o seu próprio pensamento, quase um discurso indireto livre.
Antunes era um elegante
valsista e tinha "um par de olhos mansos" e "uma linguagem doce,
canora, todas as seduções da conversação" (p. 189). Delfina pendia para
ele. Mas houve uma primeira escorregadela que, pela interferência do narrador,
poderia tornar-se um pecado mortal: uma frase piegas, "que não a ponho
aqui para não desconcertar o estilo" (p. 189), diz o narrador. A moça,
porém, era muito educada e pouco exigente, como acentua ainda o narrador.
Já o bacharel Soares
possuía "um rico par de bigodes" que competiam com os olhos do outro.
Ele tirou-a para dançar, e em dado momento, chamou-lhe "sílfide",
enquanto dava certa pressão no seu corpo.
Ao chegar em casa, os
dois moços não saíam da mente de Delfina. Ora pendia para um, ora para o outro.
Funcionava aí a balança da dúvida machadiana, a procura da perfeição.
Depois de muito pensar,
deixou a escolha para o tempo: "Quando eu menos pensar, disse ela, estou
amando deveras ao escolhido." (p. 192)
Pela manhã, Delfina
percebeu que seu irmão tinha uma visita. Ficou apreensiva. Deveria ser o
Antunes... Constatou que era "um rapaz seco, murcho, acanhado, sem bigodes
nem olhos mansos, com o chapéu nos joelhos, e um ar modesto, quase pedinte. Era
um cliente do jovem advogado." (p. 193)
Machado desromantiza a
heroína, casando-a no final com esse personagem.
Em "Trio em lá
menor", a protagonista Maria Regina dedilha um piano durante toda a
narrativa e sonha com dois rapazes que conheceu fortuitamente, Maciel e Miranda.
Um é jovem, elegante, o outro, mais velho, mais inteligente. Mas ambos que, a princípio
pareciam perfeitos aos seus olhos, vão se mostrando falhos. "Maria Regina
viu dentro de si a estrela dupla e única. Separadas, valiam bastante; juntas,
davam um astro esplêndido. E ela queria o astro esplêndido. Quando abriu os
olhos e viu que o firmamento ficava tão alto, concluiu que a criação era um
livro falho e incorreto, e desesperou".(p. 324)
Pode-se notar que há
muitas semelhanças, não só de temas, entre os dois contos. Deixo, porém, o
desfecho da segunda estória para o leitor que se aventurar a ler o texto
original de Machado de Assis. Assim ganhará muito mais do que lendo essas
apressadas notas.
(Desenho da edição da Edigraf - SP)
(02-01-2014)
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