1/21/2012

OS NOMES DE ROSA





Se Ana Maria Machado não houvesse realizado todo o seu grande percurso na literatura infanto-juvenil, só o seu 1º livro publicado – “Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens” – já lhe daria ampla projeção no meio literário.

Mesmo sabendo ser um clássico da crítica, só agora o li, em 3ª edição, e pude perceber o quanto é imprescindível para a compreensão da obra de Guimarães Rosa. Além dessa inestimável contribuição técnica, trata-se, antes de tudo, de uma leitura das mais prazerosas, notadamente para quem conhece o autor mineiro.

Mas por que escrever uma obra tão específica apenas sobre nomes próprios de personagens? Pois é. Todos sabemos que a ficção de Guimarães Rosa, além de possuir uma linguagem inovadora – carregada de arcaísmos, neologismos, jogos sintáticos – traz escondida nos nomes de seus personagens um universo à parte de significação. O desvendamento proposto por Ana Maria Machado vai mais além, e tem tantas razões que ‘auxiliam’ na penetração no projeto rosiano que qualquer leitor se sentirá gratificado com o seu conhecimento.

A cada enigma proposto por Rosa, vai o ‘recado’ sendo decifrado e incorporado ao porquê dos temas e dos enredos que surgem da bifurcação entre o sistema onomástico (mais do que a palavra isolada) e a estrutura da própria narrativa.

No Grande sertão: veredas, por exemplo, o personagem seo Habão, que inicialmente é Abraão, sofre alterações à medida que o texto precisa caracterizá-lo diferentemente: “o nome dele não era na verdade Abrão, mas Habão que assim se chamava.” (ROSA, apud MACHADO, 2003, p. 54). Machado mostra como “começa a apagar sua [do nome] imagem cheia de conotações bíblicas de hospitalidade... (MACHADO, 2003, p. 54) para depois – transportado a outro aspecto do nome (Habão/habere/possuir), apresentar o lado ruim do personagem: “precisava de todos como escravos” (ROSA, 1958, p. 392) ou “pudesse economizava até com o sol, com a chuva” (Id., ibid., p. 392).

O escorrer incessante de um rio – o Urucuia, que nunca chega ao mar – é comparável à vida do vaqueiro nômade Riobaldo – rio + baldo (frustrado) –: “Como os rios não dormem. O rio não quer ir a parte alguma, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo (...) Recolhe e semeia areia. Fui cativo para ser solto? (...) Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre. O que eu fui, o que eu fui.” (ROSA, 1958, p. 410).

Assim como são decifradas várias acepções do vocábulo Riobaldo (“rio baldio”), os diversos desdobramentos da personagem e da palavra Diadorim (personagem do “Grande sertão”) também são tratados: “Diá” como diabo, dependendo do momento da estória; “Diá” como Dea (deusa); “Dia” como luz, brilho; “adorar” (deadorar), Deus e amor; “durar” (o jagunço Quipes falava: “Diardurinh...” (quase como andorinha) e muitos outros que aparecem no texto rosiano (MACHADO, 2003, p. 69).

O bandido Hermógenes – procurado em todo o sertão pelo bando de Riobaldo e Diadorim – é o “filho do ermo”, origina-se do nome do deus grego Hermes (Mercúrio para os latinos), lembra solidão, comércio, rapidez. “O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo (ROSA, 1958, p. 48) matador – o de judiar de criaturas filhas-de-deus – felão de mau.” (Id., ibid., p. 179).

Na novela “Cara-de-Bronze”, por exemplo, o tema da procura da poesia começa pelo próprio texto, cujo teor poético é tão explícito quanto misterioso: “A noiva tem olhos gázeos” (Id., ibid., p. 6l9). Através do personagem Grivo (já insinuado: grifo), o emissário do enigmático Patrão, segundo Ana Maria, “não sai à procura do sentido, nem do real” (MACHADO, 2003, p. 92), mas da palavra como significante. Por outro lado, ao chamar a atenção para o que está escrito (grifado), ele mostra o mundo por meio da linguagem.

Guimarães Rosa, em “Cara-de-Bronze”, a partir dos conceitos de significante e significado procura atingir finalmente o signo, como se demonstra na passagem com o vaqueiro Maçapira (pira = fogo) que cuida da fogueira para ‘iluminar’ e premiar o leitor com um epílogo assim: “Estou escutando a sede do gado.” (ROSA, 1958, p. 691).

Anteriormente, na resposta a Cicica, a fala do Grivo desmonta o lugar-comum à maneira machadiana, e remonta um velho e surrado provérbio em outras bases: “Ninguém não enxerga um palmo atrás de seu nariz...” (ROSA, 1958, p. 618).

Nas suas 203 páginas de O recado do nome” – referência à novela rosiana “O recado do morro” – Ana Maria Machado, analisando aspectos linguísticos do Grande sertão: veredas e de Tutameia e das novelas “Cara-de-Bronze”, “Uma estória de amor”, “Buriti”. “Dão-Lalalão”, “O recado do morro” e “A estória de Lélio e Lina”, nos dá a grande dimensão que os nomes próprios dos personagens podem ter na estrutura e no significado das narrativas, especialmente nas de Guimarães Rosa, este emplumador de palavras, como ele mesmo se denominava.

Referências:
MACHADO, Ana Maria. Recado do nome – leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 2ª ed. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1958.
______. Cara-de-Bronze. In: ______. Corpo de baile. 2 vol. 1ª ed. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1956, p. 555-621.