5/23/2012


FUENTES DE “A” a “Z



Habitualmente não volto a resenhar um mesmo livro, embora faça costumeiras releituras de fragmentos que me chamem a atenção. Desta vez, porém, abro uma exceção para Este é o meu credo (Rio de Janeiro: Editora Rocco, 303 páginas), do mexicano recém-falecido Carlos Fuentes,
É que, nos capítulos em que se divide a obra, há mais alguns textos sobre os quais gostaria de comentar. De A a Z, começando por “América Ibérica” e finalizando com “Zurique”, Fuentes nos embala com ideias originais principalmente naqueles intitulados “Amizade”, “Beleza”, “Deus”, “Esquerda”, “Eu”, “Filhos”, “Globalização”, “Jesus”, “Tempo”, do que se pode depreender que o livro não é apenas o manual de um especialista a falar sob a perspectiva da arte ou da literatura, e sim um homem de cultura que expõe sobre temas até cotidianos, no prisma de sua experiência como grande leitor e observador do mundo e dos homens.
Além disso, sua linguagem é fluente – às vezes até poética – o bastante para interessar a leitores dos mais variados interesses, que daí podem tirar valiosa contribuição não só para ampliar o horizonte de sua cultura como também para admirar a escritura de um grande autor.
No capítulo sobre a “Globalização”, por exemplo, Fuentes faz um imprescindível retrospecto histórico que se inicia com o século XX e o fascismo, a depressão, a II Guerra, Stalin, os males do capitalismo e do totalitarismo soviético, o macartismo, a Guerra Fria, a paranoia anticomunista, para chegar à América Latina e seus problemas. E aporta na globalização.
Neste texto, que parece datar de proximidades do ano 2000, portanto, bem antes dos problemas atuais dos países da comunidade europeia, Fuentes fala da necessidade de esse novo tipo de estado se tornar mais regulador e normativo, e onde iria se reduzir o estado proprietário. Pelo fato de ser a globalização inevitável, diante de um mundo que se torna cada vez menor com o fenômeno da comunicação, os perigos da especulação aumentam e fogem ao controle do estado com mais facilidade, principalmente nos países da América Latina, onde “não há globalidade que valha sem uma localidade que atenda” (p. 122).
Nosso autor alertava há mais de 10 anos para os perigos da mundialização (como a denominam os franceses), ante as diferenças entre países e também entre populações, e para o seu fracasso se não forem observados os problemas de desemprego, fome e miséria, perda de soberania, falta de serviços sociais adequados etc.
Concluo com Carlos Fuentes, pois melhores palavras eu não teria: “Por isso é tão importante ir construindo, passo a passo, o edifício da legalidade internacional para a era global. Não abramos, como fez Virgílio no inferno(1), uma porta de mármore para enviar falsos sonhos ao mundo. É preferível a paciência de Jó(2), para quem as águas acabarão por desgastar as pedras, mas permitirão, também, que a árvore volte” (p. 130).
Voltarei em breve a este livro para novas considerações.

(1)Virgílio, poeta latino que, na Divina Comédia, serviu de guia para Dante, e abriu-lhe as portas do Inferno.
(2)Jó, personagem bíblico conhecido pela fé e pela paciência, apesar dos sofrimentos que enfrentou.



5/15/2012

UIVOS NO BRONX






Na década de 1950 surgiu nos Estados Unidos uma nova leva de escritores que foi denominada pela crítica literária e pela imprensa de Geração Beat. Eram conhecidos como poetas “beatniks”, uma mistura de intelectuais e vagabundos, que perambulavam pelo país em busca de aventuras.
Além de adotar um posicionamento contra o stablishment, eles também queriam viver como artistas, evitavam o trabalho rotineiro e a vida burguesa, o chamado “american way of life”.
Combateram todas as normas regulares de conduta e tiveram uma participação importante na militância contra a Guerra do Vietnã que os Estados Unidos travaram tão injustamente contra o povo vietnamita. Também protestaram contra a intromissão do país na política interna e na independência de outros países inferiorizados militarmente.
Os mais importantes representantes dessa geração foram Jack Kerouac, William Burroughs e o poeta Allen Ginsberg, do qual iremos falar especialmente.
Ginsberg nasceu em Newark (Nova Jersey) em 1926, e morreu em Lower Manhattan em 1997, aos 70 anos, depois de uma vida bastante atribulada como autor-personagem. Sua trajetória variou entre uma inclusão como elemento considerado perigoso pelo FBI e premiações de poesia como a do Festival de Struga, na Iugoslávia, o National Book Award e a participação na Academia Americana de Artes e Letras nos EUA.
Acaba de ser publicado no Brasil uma edição especial do seu poema “Uivo” (“Howl”) (Editora Globo), tradução de Luis Dolhnikoff, em versão “graphic novel” (narrativa visual), ilustrada pelo artista Eric Drooker. Uma simbiose perfeita: um texto poético arrasador, acoplado aos visuais catastróficos e hiperrealistas de um retratista de pôsteres de metrópoles norte-americanas.
São pouco mais de 200 páginas em cores, em papel “couché”, nas quais os autores vão desenvolvendo narrativamente uma mistura gráfica em que o poema dos anos de 1950 – quando os protestos públicos se iniciavam – se une a imagens desconcertantes do final do século passado retratando a ambiência da pós-modernidade.
Na epígrafe do livro, a famosa dedicatória de Ginsberg:
“Dedicado aos fodidos anônimos
& miseráveis sofredores
& hipsters de cabeça feita
de todos os lugares...” (p. 9)
Bem ao modo dos autores cujo eu-lírico narra a própria vida e tudo o que vê, Allen inclui tudo em sua crítica-coletânea da miséria humana:
“...famélicos histéricos nus, arrastando-se
pelas ruas do bairro negro ao amanhecer
na fissura de um pico.” (p. 19).
Seus versos, após a abertura, são quase todos construídos como orações adjetivas antecedidas naturalmente pelo pronome “que”, numa sucessão ininterrupta de descrições dos famélicos e miseráveis que viu nas ruas e com quem até conviveu:
“que pobreza e farrapos e ocos olhos loucos se
sentaram fumando na escuridão sobrenatural
de apartamentos sem aquecimento flutuando
pelos telhados das cidades contemplando o jazz,” (p. 22)
Os bairros novaiorquinos são os mais contemplados nos textos e imagens:
“que se prenderam no metrô para a interminável
viagem de Battery ao sagrado Bronx com benzedrina
até que o ruído de rodas e crianças
os arrancou de volta tremendo boquiabertos
abatidos desertos do cérebro drenados de todo
brilho na lúgubre luz do zoológico.” (p. 37)
Nas páginas finais reduz-se a crítica e acentua-se o lado lírico para transformar-se o poema no que se pode chamar de um hino da solidariedade humana, até se fechar assim:
“Estou com você em Rockland nos meus sonhos
você caminha gotejando de uma viagem marinha
pela estrada que atravessa a América em lágrimas...
até a porta da minha casa na noite ocidental” (p. 189-190)
Escrito em 1955-56 em San Francisco, “Uivo” se tornou, com o passar dos anos, um clássico da literatura pop nos Estados Unidos e no mundo, e Allen Ginsberg, um sucessor de Walt Whitman e dos poetas corajosos de todos os tempos.