11/25/2014

DELSON GONÇALVES FERREIRA (1928-2014)


Delson Gonçalves Ferreira é filho de Cataguases embora tenha nascido em Miraí e sempre fizesse questão de afirmá-lo. Acontece que, além da proximidade e das muitas similaridades, a cidade de Miraí já fez parte do nosso município. Portanto, podemos dividir o orgulho – e ele, naturalmente, sobra para as duas cidades.

Delson tinha índole de pesquisador e desde cedo destacou-se como escritor e professor de colégios, cursos pré-vestibulares e da Universidade Federal de Minas Gerais, onde se aposentou.
Notabilizou-se também pela publicação de livros não só na área do ensino literário como também de crítica e pesquisa.

Suas obras centrais são Ascânio Lopes - vida e poesia, editado nos anos 60, em que faz excelente levantamento da vida/obra de Ascânio Lopes, e que tem sido muito importante no conhecimento e na divulgação do poeta mineiro, e O Aleijadinho, em que levanta minuciosamente todos os elementos biográficos e artísticos que marcaram a presença deste gênio da arte em Minas Gerais.

Soube por seu irmão Dalton de sua morte em Belo Horizonte. Lamento muito, principalmente pela amizade e admiração que tinha por ele. E destaco sua grande contribuição como professor e ensaísta para a cultura cataguasense, mineira e brasileira.

11/08/2014

COM OS BESOUROS FALANTES NA PELE DA LINGUAGEM

No meio do mato besouros falantes emitem cochichos. Formigam farelos de falas, confundem e misturam nexos. Estes não são propriamente aqueles animaizinhos de asas noturnas e dura casca que, na ânsia da luz e dos holofotes, rodopiam rodopiam até cair embaixo de sapatos esmagadores.

Seu misterioso ciclo de vida resume a metáfora do destino humano ou o capricho das sensações e a busca de um sentido para as coisas. Os besouros que narram também pintam e bordam na construção de um texto sem paralelismos e rodeios. Sua mágica entra na poesia e sai na prosa, e, quando se pensa que se tornaram líricos, já se vestiram de épicos ou penetraram no drama.

Esses bichinhos ruminam sua fome de dentro da mente humana e dali se veem diante de uma sede que não sacia nunca. Ficam remoendo um grilo que o descuido deixou apanhar, ou dormem sobre o remorso de horas tediosas. São falantes porque o tempo todo falam e ouvem vozes que lhes ensinam coisas, e eles as devolvem ao leitor no seu besourar contínuo.

A maioria dos microtextos do livro de P. J. Ribeiro ("Besouros falantes"), que transcrevemos a seguir, foi escrita na década de 1960, alguns na de 70, poucos na virada do século. Mas todos trazem indelevelmente inscrita na pele a marca da aventura com a linguagem, que faz do homem não o melhor, mas o mais inquieto bicho da natureza.
Transcrevo algumas dessas micronarrativas de P.J.Ribeiro para o leitor continuar a ‘viagem’ que iniciei:

MONTANHAS DE MINAS
Olhe, só depois de passar por certas coisas e de notar esta chuva caindo de mansinho e que só aumenta com o tempo é que finalmente tomo coragem, passo as mãos nos móveis da sala e sinto como estão frios. Então percebo lá fora aquelas montanhas de Minas que continuam caladas estupidamente geladas olhando para mim.

NUM DETERMINADO PAÍS
Num país subdesenvolvido o que vale é ser rico.
Num país subnutrido o que vale é ser bicho.
Num país desenvolvido o que vale é ser mito.
Num país independente o que vale é ser gente.

CLÍNICA
Por favor,
aguarde na recepção.
Pode ser grande
a decepção.

DIAS E NOITES
Dias e noites eu me chego bem pra perto de mim – o sol se distancia e uma luz se apaga – e as perdas qu’eu sinto no peito, contrafeito, mordem-me os sentidos, tolhem-me a vontade.
Noites e dias me pergunto tonto qual o destino dessa vida errante, se pra me encontrar me afasto tanto, se ao me entregar me despedaço antes.

COCEIRA
Coço a cabeça, passo a mão na perna, limpo meu rosto, pego o cigarro, escovo os dentes, sento-me no vaso e só aí sai alguma coisa.
Descarrego sonhos.

DE QUE ME ADIANTA?
De que me adianta ser feliz em Atlanta?
De que me vale ser uma besta em Sales?
O que me impede de ser um cego em Medes?
O que me leva a esconder nas trevas?

DO LADO DE LÁ
Quero ver o que acontece
do lado de lá.
Quero mudar de time
pra me escalar.

Quem puder ouvir essas vozes aproveite; o livro é pequeno, mas a conversa é preciosa. Os besouros não estarão para sempre do lado do homem, a entrar em seus pensamentos para lhe dar ideias...

11/06/2014

VEREDAS NO "GRANDE SERTÃO"


O Grande sertão: veredas, obra maior de Guimarães Rosa, é um relato pontilhado de vozes, sonoridades e o entrecruzar de comentários e informações emitidas em todos os níveis.

É narrado por Riobaldo, um vaqueiro meio “letrado” que, por essas coisas do destino, se vê ali como jagunço “no meio do redemunho”, dentro do sertão e das aventuras que vão acontecendo.

Quem "ouve" as estórias contadas pelo protagonista Riobaldo é um homem misterioso e culto (ou o próprio autor, que ouviu de jagunços e vaqueiros os ‘causos’ transformados e refundidos em esplêndida trama ficcional) que jamais aparece, fica sempre na penumbra dos fatos.

Muitos leitores começam a ler o livro e param logo no início, porque querem "entender" imediatamente a narração, mas com isso incorrem num grande erro. É preciso avançar nas primeiras páginas, apenas ouvindo aquela estranha música, pois trata-se de um poema de grande fôlego, uma epopeia porém em prosa e que necessita de se espraiar para tomar corpo.

Quando os seus sentidos perceberam aquela melodia, você já estará trilhando aqueles novos caminhos, por dentro de palavras mágicas, e a estória do livro, trazida de dentro da construção vocabular e sintática de Rosa, se tornará conhecida e familiar.

Outro dado interessante é que dentro do Grande Sertão, há muitas pequenas estórias, entre elas o caso de Maria Mutema, o do Aleixo e o do Pedro Pindó. Vou tentar resumir os dois últimos, a seguir.

O Aleixo era um homem mau que vivia no Passo-da-Areia, junto a um açude onde criava traíras.
Um dia, Aleixo matou, sem motivo, um velhinho que por lá passara pedindo esmola. Antes de um ano se passar, seus quatro filhos adoeceram com uma espécie de sarampo, tiveram os olhos vermelhos e ficaram cegos.
Aleixo não enlouqueceu, mas mudou completamente sua vida, passando a fazer caridade dia e noite.

Já o caso de Pedro Pindó apresenta uma mudança do posicionamento dos personagens. Pedro e sua mulher viviam sossegados e no caminho do bem. Mas tiveram um filho de nome Valtêi que tinha maus instintos e maltratava e feria pessoas e animais. Os pais, então, começaram a surrar o menino até sangrar. Com o tempo, habituaram-se a bater nele todos os dias. O menino foi emagrecendo e os pais quanto mais batiam, mais sentiam prazer naquilo. Diziam os vizinhos que o menino não iria durar até a próxima quaresma.

Assim são – dentro da trama maior – as pequenas estórias de Guimarães Rosa no Grande sertão: veredas e nos demais livros. Relatos cheios de mistério e estranheza que retratam a vida num sertão cercado tanto de fantasia, religiosidade e preconceitos como de belos gestos e de aventuras fantásticas.
Depois desse romance o leitor nunca mais será o mesmo.

Guimarães Rosa, João. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J.Olympio, 2ª ed., definitiva.

11/05/2014

UMA SINFONIA PARA MANUELZÃO

Só os verdadeiros ficcionistas têm o segredo da criação dos grandes personagens, baseiem-se eles ou não em algo de suas próprias vidas.
Mas o que aconteceu a Manuelzão escapa até ao previsível.

Manuelzão vivia no norte de Minas, era um vaqueiro daqueles embrenhados no sertão e às voltas com o gado e a roça. Um dia, conheceu um tal de dr. João Rosa, a quem contou suas estórias. Tempos depois, se transformou num personagem famoso, pois o doutor que havia conhecido era nada mais nada menos do que o grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa.

Descoberto pela mídia após a morte de seu ´criador´, Manuelzão conheceu a grande cidade, fez sucesso em entrevistas de jornais e revistas e até na tv, com aquela sua maneira simples de contador de 'causos', de físico quixotesco e jeitão mulherengo.

Certo dia, porém, morreu o nosso herói.
Foi então que o contista Adrino Aragão resolveu contar como foi o dia em que morreu Manuelzão. E não é que Manuelzão, bebendo um fiozinho da prosa poética do autor amazonense, tomou vida e voltou às páginas de um novo livro, como personagem recriado pelo Adrino.

O livro se chama No dia em que Manuelzão se encantou – uma novela em que o autor narra os últimos dias do nosso Cavaleiro das Gerais fora do seu habitat.
É prosa, mas beira a poesia, e não poderia ser de outro modo ao se colocarem par a par o contista-poeta Adrino Aragão e um personagem especial de Guimarães Rosa, ou João Rosa, como o chamavam os vaqueiros de Minas.
Manuelzão, que havia saído da ficção de João Rosa para os bastidores da vida, para as entrevistas de rádio, televisão, jornais e revistas, agora faz o caminho inverso. Volta, depois de morto, definitivamente ao universo ficcional – de outro escritor –, transforma-se em personagem de uma nova estória.

No dia em que Manuelzão se encantou narra os últimos dias de Manuelzão no quarto de sua casa, após deixar o hospital, assistido pela mulher Rosalina. É lá que, entre lençóis e remédios, sente saudades do sertão, das veredas e dos animais, da vida aventurosa de cavaleiro das Gerais.

Longe da cavalgada e das proezas, no seu leito de morte, Manuelzão, através do habilidoso discurso indireto livre do narrador, revive o périplo que era sua vida e se sente agora deslocado. “O sonho de Manuelzão era poder morrer montado no cavalo, tocando boiada pelas veredas do sertão” (p. 23). Um verdadeiro cavaleiro não poderia morrer assim.

E agora estava ali, embalado pelo passado, lembrando a festa de inauguração da capelinha de Samarra, sonhando com o amor impossível de Leonísia, dormitando bem na fronteira onde termina o real. O voo de um passarinho que entra no seu quarto é mais do que um presságio: parece o preâmbulo do poético rondando a delicadeza e a magia do instante que precedeu à sua morte.
Comparecem algumas visitas ao quarto do doente: uma repórter de jornal que recebe os galanteios do velho vaqueiro, seus companheiros do Grande sertão e de Corpo de baile e o próprio autor. Manuelzão se emociona, fala com o matador Cara-de-Bronze, se enternece com Diadorim e Riobaldo, mas a cena final é reservada para o ‘criador’ João Rosa, o homem das letras e também o ouvinte atento que tudo anotava e o tornou famoso.
Em poucas e belas páginas, Adrino recria um Manuelzão trazido da legenda rosiana e de uma breve passagem pelo sucesso na cidade grande.

Adrino Aragão, em sua pequena novela, não reproduz a saga ou a linguagem rosiana. Mais do que isso, produz um texto independente e de rendilhado fino e sutil, cujo resultado é a magia desta pequena estória, certamente uma joia que dialoga com as veredas do grande sertão ficcional de Guimarães Rosa.