6/23/2011

C'ANTIGA DE AMIGO





ROSÁRIO FUSCO, O APÓSTOLO



Passaram-se mais de 40 anos da morte de Rosário Fusco (1910-1967), e só agora, após a leitura d’O livro de João, pude concordar com o que o nosso autor me confidenciou certa vez: “este é o meu melhor livro”.
Composto de 31 capítulos em 272 páginas, edição da Epasa em 1944, confesso que comecei mal a leitura do 1º capítulo. Só fui me interessar mais lá pelo capítulo IV, página 44, e apenas me entusiasmei na metade do romance, quando descrições e reflexões surgiam mais amiúde e alternadamente penetravam na trama. “Vinha com ele [o vento] um cheiro de mato, cheiro rural de chácaras e pastos orvalhados, que o olfato identificava no espaço e a memória situava no tempo. A meninice voltava, por instantes, nas asas da manhã.” (p. 44)
João, o protagonista-narrador, conta a história ora em 1ª pessoa, ora em 3ª, como melhor convinha à narrativa. Como nesta 3ª pessoa: “E João arrumava as malas, pregava suportes na parede” (p. 180), que admite a introspecção: “Hoje, o jantar será especial, João. [....] tens que te preparar para a infalível exibição.” (p. 180) Ou nesta 1ª pessoa: “Cada palavra dela me caía no ouvido como uma pedrada – mas as pedras transformavam-se em sons e os sons compunham a valsa vienense do restaurante.” (p. 201)
A impressão que me ia ficando da ‘convivência’ de alguns dias com João, Moreira e Carmélia – o triângulo amoroso e centro das ações – era de que ali estava o romancista pronto aos 34 anos, totalmente consciente do manejo ficcional, em seu segundo romance. Gira o enredo em torno de um casal – Moreira (fotógrafo meio malandro) e Carmélia – que acolheu João (funcionário de um laboratório) em sua casa num subúrbio de uma grande cidade (certamente o Rio de Janeiro). Os demais personagens vão rareando quando a trama começa a se concentrar no trio principal. Os bondes, o trânsito, as distâncias, os cafés, as praias, casas de prostituição identificam a ambiência de uma metrópole brasileira dos anos 40, como se pode perceber neste fragmento em que o narrador aponta o dedo para a obviedade, mas com sentido de descoberta: “(...) o subúrbio não era abandonado, era uma positiva mentira o conforto da cidade, a sedução do centro. Não se mora nos jardins, nas lojas de luxo, nas praias: mora-se num quarto, numa sala, numa casa.” (p. 177)
De repente senti que o romance se escrevia sozinho – me lembrando uma observação de Hemingway – para um leitor atônito ante exposição tão crua e verdadeira da natureza humana ficcionalizada com maestria: “Só me satisfaz uma morte que abale a terra, escureça o sol, rasgue o véu do templo”. (p. 124) “Nas guerras morrem milhões: sem rezas, sem arrepios, sem comoções dos presentes, sem ao menos um pregão anunciando algo – ‘morreu por isso ou por aquilo.’” (p. 125)
Sucedem-se a cada capítulo, ora em monólogo interior, as vozes individualizadas do protagonista e do narrador, ‘dividindo’ o mesmo personagem: “Fuja do jamais, João, não há jamais. Sim, não há jamais porque o tempo é meu, mora em mim, dentro de mim, num lugar onde não existem paredes separando o presente do passado e o passado do futuro, onde tudo se liga, porque tudo nasceu ligado com o mundo, antes das coisas terem nomes, antes das eras, antes da história, milênios antes de nasceres, João, se te satisfaz participares nominalmente do mistério.” (p. 135-6)
O livro de João me lembrou, pelo título, desde o princípio da leitura, um outro romance de Rosário Fusco – Dia do Juízo –, publicado em 1961, quase 30 anos depois. Portanto, fiquei como que esperando o que viria, e na página 116 encontro: “Coincidira aquele momento com o Juízo Final cotidiano a que estamos sujeitos? [....] Não há nada que se faça, de bom ou de mau, sem consequência. Se não a percebemos não quer dizer que não exista. Todo caminho começa por um passo. Dou o passo, mas não vejo o que piso, o que tenho debaixo dos pés.”
Não só esse, mas os motivos bíblicos ‘perseguem’ o narrador: “Como o paralítico do Novo Testamento, eu carecia da palavra, de uma palavra – tácita ou expressa num gesto – para caminhar. Não basta traduzires, João, nem indicares traduções a serem feitas.” (p. 207). Na página 252, leio o complemento na mesma tecla, em vozes que se alternam: “Não colocava o pecado sob o signo do imprevisto: marcava-lhe data, hora e lugar, porque só está fora do tempo e do espaço o Dia do Juízo. Pode ser agora, no momento em que escrevo, pode ser logo mais, talvez amanhã, acaso daqui a milhões de séculos. O relógio que o apontará não fica na parede, nem no bolso, nem no pulso, nem na mesa da cabeceira, nem na escrivaninha do laboratório, nem na torre da igreja, nem na coluna do abrigo de bondes, nem no alto da estação: está dentro de ti, João, dentro de todos, pingando como a torneira da casa do fotógrafo, sem te encher, como a chuva não enche o mar e o volume deste é sempre igual, receba ou não as águas de todos os rios da terra.”
No espaço destas breves considerações, não é possível mostrar integralmente a grandeza desta obra de Rosário Fusco, mas por suas últimas palavras – poéticas, demiúrgicas – pode-se entrever o que deixei de anotar: “Eu estava solto nos topos da terra, entre gases desconhecidos e poeira, paralelos e meridianos, arranhando a cabeça nas constelações. Testava as mãos nos trópicos e andava de patins nos fios de círculos polares, íntimo dos astros, sem testemunhas e sem ligações. Mas os espíritos dos meus mortos – amigos e conhecidos – não me fiscalizariam porventura?” (p. 272)