11/12/2012

CAMPO DE POUSO I (conto)

(desenho de Zeluca - José Lucas Ferraz)

“Às vezes também penso, e imagino, que o que me dá realmente este enjoo constante é o movimento de rotação da Terra.”
“[...] cheguei até à beirada do planeta e olhei pra baixo. Sabes que não tinha nada lá? [...]” (Lecy Delfim Vieira)



KJ-1 tremera ao acordar. Num jato, estava no banho e preferira não pensar. Como se pudesse estar à meia-luz dos fatos e esquecer tudo. Espanejar a memória. Desligar o painel como na vídeo-tela. Escurecer por dentro. Fim.

As cortinas de par em par na torre: abertas agora por um botão. KJ-1 vê a noite, quase refeito. Ele sustenta náuseas de tempos que se acumularam em fatias de bolo. Por isso foi que tremeu, num susto, em lances de sonho.

Esses transportes à outra realidade haveriam de ser sempre mal lembrados. Não dera jeito de se livrar da memória ainda, como também dos sonhos rápidos. Num segundo, vira YU-15, NO-3 e WRE-17, figuras embaçadas de épocas passadas e ruins.

Das alturas da torre em que mora e pela vista magnética aos seus olhos, um grande setor do Campo de Pouso parecia fantástico demais para ser visto. Como o que havia acontecido em sua vida anterior.

Pontos luminosos no horizonte, brilhos de outras torres mais distantes, um jato puro passando, o violeta saído de cores difíceis de se descrever, no ar. Nuvens-flocos mais escuras que claras. Tonalidades no céu, na pré-manhã, noite ainda. Silêncio natural. Focos de luz relanceando vez ou outra.

Ele fora para ali recentemente, mas como diferia de outras eras, esse tempo.
Aquele outro formava um compartimento estanque com espaços marcados e horas definidas.

KJ-1 passara pela colônia de estímulos e fizera primeiro um tratamento de adaptação.
No Campo de Pouso, agora aguardava as reações e partiria para ‘novas tendências’, como haviam previsto os seus iniciadores. Para os técnicos do KRJUYC talvez essa fase de transição e a simples colocação no Campo pudessem levar KJ-1 a um plano melhor, e talvez nada mais fosse necessário, devido ao nível de seus conhecimentos. Havia sido um especialista em ficção científica, um indivíduo sensível.

As alterações na memória levaram, porém, KJ-1 a uma preocupação maior. Depois das técnicas iniciais, aprendera o médium-tônus-ócio. E criara um vazio interior indefinível. Não poderia dizer que fosse bom ou ruim. O certo é que KJ-1 voltara a um estágio pré-cultural e as coisas ficaram distantes e desinteressantes.
Os olhos de KJ-1 não saberiam perguntar mais nada: as torres onde morava fechavam-se numa solidão de régua e compasso.

Há muitos dias que não ligava a vídeo-tela. Não lhe interessavam as notícias, a ludo-arte ou o make-messages. Estava vivendo ainda do mal, ao sabor, no entanto, de uma esteira de tecnologia e lazer, como os demais naquele Campo. Por vários dias, andou lentamente em seu life-room. Os olhos fixos no grande visor da torre.

Agora começara a sentir novamente. Não eram bons sinais para quem viera de lutas psicológicas antigas e pensara estar fora de um tempo-espaço convencional. Por certo não havia lugar mais para angústias e problemas individuais. Isso o assustava ainda.
E internamente KJ-1 já estivera preparando terreno para uma saída dessas, desde que passara a ter contato com o pessoal do Campo de Pouso.

O psicológico só beneficia tiranias mentais – pensara certa vez. Blasfemou para o ar. E o éter lá fora, no nível das torres, parecia diluído e filtrado, como nas galáxias que aprendera a ver na tela, em horas variadas. “Estrelas natimortas”, “a fria constelação do Touro”, tudo lembrava um poema de Faustino. Bahh!!! Velhas ideias.
De repente vê os limites da noite na Terra, em confronto com as imagens pretas de uma visão extraterrena.

E, na vídeo-tela, aos poucos, seu decifrador de ideias traduz, em filamentos, um estranho esboço visual que logo reconhece claramente. Não pode acreditar no que vê.
Então KJ-1 – ao mesmo tempo que parece ensaiar as palavras – codifica o pensamento, e a máquina imediatamente recebe seus impulsos, mostrando no visor as primeiras frases de um longo texto em que se vê mergulhar:

Campo de Pouso, 21 de janeiro de 1974.

11/02/2012

PRIMAVERA INDÍGENA

(desenho de Ariana)


Massacre do sonho guarani.
Mais saques no canto bem aí.

Índio: – Toda a terra era minha.
Fazendeiro: – Eu cheguei primeiro.
Guarani: – Mas eu já tava aqui.
Fazendeiro: – Ri melhor quem ri por último.

Federação Racional do Ímpio – Fundai.

Índio: – Ensinei o branco a tomar banho.
Fazendeiro: – Não penso em coisas de antanho.

Regularização de terras indigentes.

Índio: – Mortes não apuradas.
Fazendeiro: – Sorte não invejada.

Remarcação de preços na reserva.

Índio: – Aqui é a morte coletiva.
Fazendeiro: – Aqui é o corte seletivo.

Comissão de Rejeitos Humanos.

Índio: – Morreremos por nossa terra.
Fazendeiro: – Enterraremos em sua própria serra.


02-11-2012