2/23/2014

A MINERAÇÃO DA ESCRITA



Será lançado em Cataguases provavelmente em maio deste ano o novo livro de Lina Tâmega Peixoto Entre desertos (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013). Mais uma obra que vai enriquecer a fortuna literária de uma autora que começou a escrever em finais da década de 1940 e ainda tem muito a buscar nas minas de sua escrita.

Ler um livro de Lina requer tempo. Não o tempo normal que se gasta para leituras cotidianas, mas um tempo para se concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do que a fruição de palavras que vão puxando palavras. Seu discurso requer um silêncio dentro desse tempo para se buscar, na memória de poemas já lidos, algo que nos favoreça e possa tirar do doce deleite de leitor desavisado.

Por outro lado, uma leitura distraída pode também trazer seus frutos, aqueles que, ao final de cada poema, sentimos quando pensamos apenas como diletantes do livro.

A partir dessas duas direções, comecei minha leitura, e deu certo mais uma vez. Fui dirigindo meu voo por penetráveis porém surpreendentes vias – que é assim o caminho dos bons livros – deparando ora com o recurso da metalinguagem, ora com a difícil música de alguns versos ou com a ligeireza do pensamento.

Neles há a predominância do gênero lírico, no entanto eles se repartem em temas cotidianos, religiosos, de amor à terra, aos amigos, à vida etc.

Em "Cone", "Hexágono", "A idade das palavras", "Caligrafia", "Atributos", está presente a metalinguagem diretamente, como nos exemplos:

"Mexo nas folhas do livro
como quem abre no corpo
a danação do espírito." (p. 35)

"Uma trepadeira de papel
arrasta-se pelas palavras
e entra pela janela do quarto." (p. 37)

No "Encontro em São Giovanni Rotondo", manifesta-se o elemento religioso, precedida pela epígrafe "Em São Padre Pio, a morte é construção". Nele, a autora vê "olhos abertos para as constelações da morte" (p. 57). O fecho do poema não é menos angustiante:

"Crespas e alvas palavras soltam-se de mim
em direção ao túmulo.
E cintilam na terra." (p. 57)

A solidão penetra no eu-lírico em "Sinto-me só", quase todo ele construído, filosoficamente em metáforas interrogativas, mas iniciado com exigências de quem assedia a poeta:

"Pediram-me chuva no deserto
como se eu fosse um seio
a amamentar as águas." (p. 55)

"Cobrir os ombros com altas estrelas
amassadas pelo azul que o céu sustenta?
Escavar o coração para vê-lo
enlutado de rosas
e rosário de vozes enterradas vivas? (p. 55)

Entretanto as vozes da poesia de Lina encontram mais eco nas coisas da natureza, no mundo físico que contempla, para dali tirar o pensamento mais denso, a lição da hora amarga ou do momento feliz, na "lida vã de limpar o tempo" (p. 26):

"lavo e enxáguo minha vida.
Amontoadas no sol
as montanhas de Minas erguem-se
em panelas, chaleiras e xícaras." (p. 27)

Tenho muito mais a falar sobre esse livro, mas é preciso deixar algo ao leitor para encontrar neste Entre desertos – ótimo título a nos acenar para horizontes poéticos desta poesia maior com que Lina nos brinda de tempos em tempos. Vale transcrever os versos em que mais uma vez fala de sua terra:

"Gotas de asas revoam
no manso curso do rio Pomba
como afluentes do pássaro." (p. 22)

(23-02-2014)











2/16/2014

"CATAGUASES CARTAZES" - Expô de poesia visual 1960-70

A MORTE DIRIGÍVEL


Drones são naves solitárias
que seguem um remoto comando
e, como folhas ao vento
ou como aves sem bando,
viajam no silêncio e na sombra.

Em seus bicos, trazem inscrita
a morte secreta e dirigível
que localiza em voo sinistro,
por um toque celular,
alguém que esteja no deserto,
no mar ou no indizível.

Um drone corta o espaço
em fatias de simples decupagens,
como se a viagem fosse apenas
pelo prazer do ar em suas penas.

Noturnos, eles traçam um voo cego
para pegar de surpresa o inimigo
ou qualquer um que desafie
o Império, o poder, o ego.

Voltam depois, na mesma noite-asilo
de que saíram, pois são velozes
vorazes assassinos do ar,
e, como estes, vão dormir tranquilos
nos hangares da inconsciência
que lhes tirou a inocência.

11-02-2014

2/10/2014

O PRESENTE QUE VEIO DA GRÉCIA


Não é segredo para ninguém o que a Grécia representou para o mundo – principalmente para o Ocidente – em termos de civilização e cultura. Sua influência através dos tempos deu-se de maneira intensa e multiforme, tanto na literatura como na história, na política, na filosofia, no teatro e até nos esportes.

Foi ali que beberam Shakespeare para suas tragédias, Camões para sua épica, e até Freud, que buscou na nomenclatura e no drama situações para suas descobertas no terreno científico, além de muitos outros.

Nessa longa tradição, a figura inaugural foi Homero que no século VIII A.C. criou a poesia épica e com ela as magníficas Ilíada e Odisseia. Imagine-se a existência desses dois monumentos da literatura 800 anos antes da era cristã! São obras clássicas inspiradoras de toda uma linha de produção que veio a se cristalizar no Renascimento, já no século XVI de nossa era.

Depois da época arcaica – a de Homero e Hesíodo – sucedeu-lhe a Idade Clássica, representada pelos mestres da filosofia, do teatro e da história cujo apogeu aconteceu nos séculos IV e V A.C. A filosofia, centrada na tríade composta por Sócrates, Platão e Aristóteles, legou à humanidade a base por meio da qual se iniciam, até hoje, os estudos filosóficos.

O mundo grego, fundamentado no debate e na variedade de ideias, também o era nas guerras, tema consagrado pelos primeiros historiadores de que se tem notícia: Heródoto, denominado o pai da história, e Tucídides.
No período entre os séculos VI e V A.C., com o objetivo inicial de homenagear os seus deuses e antepassados, inaugurou-se a arte teatral, firmada mais tarde com os festivais dramáticos. Considerado também um evento cívico, o teatro teve em Sófocles (Édipo-Rei), Eurípedes (Medeia), Ésquilo (Os sete contra Tebas) e Aristófanes (Lisístrata) os seus expoentes.

(texto já publicado no jornal Cataguases)

2/08/2014

DOMINGO DE LEITURA

Há algumas décadas ele me acenava da estante. É desses livros que vamos deixando para depois, devido a leituras prioritárias determinadas pela necessidade no trabalho e/ou nos estudos. Recentemente mandei-o para a encadernação e agora voltou em uma cor bege, mantidas, no entanto, no seu interior, a capa e as características que me atraíram desde 1959: Adeus, Mr. Chips (Porto Alegre: Editora Globo, 4ª ed., 1959, 132 pp.) , uma pequena novela escrita por James Hilton.

Chegava a sua vez. O domingo não me prometia nada e, mais do que uma leitura, um entretenimento poderia mudar as coisas, como efetivamente aconteceu.

Vale uma pequena introdução sobre o autor.

Escritor do século passado, Hilton (1900-1954) nasceu na Inglaterra, em Leigh (Lancashire) e morreu nos Estados Unidos, em Long Beach (Califórnia).

Começou sua carreira de ficcionista em 1920 com o romance Catherine herserf, mas só ficou famoso com Horizonte perdido (1933) – um best-seller na época – e com Adeus, Mr. Chips (1934). No ano seguinte, Hilton, com poucas malas e muita coragem, partiu para Hollywood, onde, até o final da vida, fez carreira como roteirista e adaptador de seus livros e de outros escritores para o cinema, com grande sucesso.

Voltando ao pequeno volume que tenho em mãos: são 18 capítulos curtos em letras grandes, formato pocket, 132 páginas. Acabei não muito rápido, mais para prolongar o prazer pelo resto da tarde na história de um professor que recorda sua vida numa escola inglesa – Brookfield – de fins do século XIX e princípios do XX.

O narrador, em terceira pessoa e com mão extremamente leve e hábil, conta a história do professor Chipping, apelidado Mr. Chips, desde que começou a lecionar. As conversas com a senhora Wickett, em cuja casa alugava um dos quartos, o contato com os alunos, o humor que desfiava em todas as ocasiões, uma vida enfim que passava como um filme, numa narrativa que parecia a princípio simples demais e que na sua inteireza se mostrou tão emocionante quanto criativa pela maestria do saber narrar.

Até o capítulo IV tudo transcorre na atmosfera da existência comum e enfadonha de um conformado solteirão que, “como ele próprio dizia, não fazia caso das mulheres, nunca se sentia bem ou à vontade na companhia delas”. (p. 27) Mas, nessa altura da novela, circunstancialmente, irrompe um personagem, uma certa Miss Katherine Bridges, “de olhos azuis e fulgurantes, faces pintalgadas de sardas e cabelos lisos cor de palha” (p. 29). Sua presença marcante e suas ideias avançadas não demoram a transformar o professor, eles se apaixonam e acabam se casando.

No flash-back do velho professor, que constitui a base da narrativa, esse fato parece ter determinado a mudança em suas atitudes, e estas, mesmo após a morte prematura de Katherine, passaram a compor, através dos anos, a mística de homem compreensivo, solidário e inovador em que se transformou o professor Chips na escola.

O desfecho da novela assinala o ‘adeus’ de um aluno a Mr. Chips e o anúncio de sua morte que consternou toda a comunidade, como foi consignado no discurso de despedida de Cartwright: “Brookfield jamais esquecerá essa figura querida.” (p. 132).





O escritor James Hilton

2/07/2014

LEITURA DE POESIA

A leitura de uma obra literária – em especial quando se trata de poesia – apresenta à primeira vista dificuldades e limites a quem se aventura por ela. E não raro as pessoas se sentem frustradas, perdem-se no caminho e interrompem o ato de ler. “Trouxeste a chave?”, perguntaria o poeta Drummond, em sua ‘procura da poesia’.

O poeta-crítico José Paulo Paes, para quem o problema está relacionado a alguns pré-requisitos da parte do leitor, ressalta, em uma entrevista dada à revista Morcego Cego, a necessidade de uma passagem preliminar, na infância e na adolescência, pela chamada leitura de entretenimento. Por exemplo, a obra de Monteiro Lobato e outras que a escola moderna praticamente abandonou.

José Paulo, nessa mesma entrevista, fala de um comportamento mais produtivo para a poesia, salientando que é essencial “uma atenção mais distraída” a quem queira se aproximar do texto poético. E aconselha: “Você tem que se deixar penetrar pela música do poema e por via dessa música chegará à compreensão”(1).

Só após o entendimento “intuitivo”, o leitor estará pronto para tentar uma análise mais técnica e assim chegar à estrutura de um poema. Nessa segunda fase, o conhecimento de teoria literária e de mecanismos críticos para se penetrar na complexidade que toda obra apresenta levará o leitor a uma etapa mais avançada e até fruitiva.

Há algum tempo foram publicados dois livros que podem ajudar o estudioso do assunto. Leitura de poesia, organizado por Alfredo Bosi (Editora Ática), e Poemas para crianças, preparado por Hélder Pinheiro (Livraria Duas Cidades). Ambos – dentro de sua temática e perspectiva particular – reúnem especialistas na leitura crítica e na avaliação de textos literários, e podem nos proporcionar momentos de enriquecimento cultural que nos permitirão penetrar cada vez mais intensamente no mundo da poesia.

1 SANCHES, Miguel. Poética do fronteiriço. In: Rev. Morcego Cego, Florianópolis, 1996, p. 95.

2/02/2014

A MULHER NO SÉCULO DAS LUZES


Émilie Émilie - a ambição feminina no século XVIII
Elisabeth Badinter
Trad. Celeste Marcondes
Paz e Terra/Discurso Editorial/Duna Dueto.

O que mais se identifica com o século XVIII europeu do que a máxima de Hegel: “Nada de grande se faz jamais sem paixão”? Assim, tudo que, em tempos passados, representava equilíbrio e indiferença às vicissitudes da vida foi afastado em prol de uma nova moda que era viver sob a ótica do amor e das emoções.

O Setecentos trouxe não só o progresso das ciências, a Revolução Industrial, a Ilustração e a Encyclopédie, como o nascimento do romance como gênero literário popular em substituição às liras pastoris, epopeias e histórias de feitos virtuosos.

Por outro lado, o poder dos reis ainda no auge e a aristocracia brilhando nos salões retratam tanto esse século quanto o início de uma classe em ascensão: a dos burgueses.

Como tempero a essas transformações que iriam alterar o curso da história, a vida de duas mulheres notáveis – as primeiras pensadoras – mexe com a nossa curiosidade ao ler a obra de Elisabeth Badinter Émilie Émilie - a ambição feminina no século XVIII, edição tríplice da Paz e Terra, Discurso Editorial e Duna Dueto.
Tendo como pano de fundo o Século das Luzes, a história de duas damas da aristocracia francesa – Madame de Châtelet e Madame d’Epinay, ou simplesmente Émilie e Louise – é magnificamente descrita no ambiente de sedução e de lances de fingimento e coragem na Corte.

A historiadora francesa Elisabeth Badinter deu ao seu trabalho, por um lado características de pesquisa séria, por outro uma tonalidade romanesca que o torna de sabor inigualável para leitores exigentes de todas as idades e gostos. Ler este livro é penetrar nos salões imperiais dos tempos do Iluminismo.

(publicado no jornal "Cataguases"