9/28/2012

SOBRE UMA "MÁQUINA DE NARRAR"


Com a publicação de Tempo reencontrado, de Alexandre Eulálio (1932-1988), a Editora 34 em parceria com o Instituto Moreira Salles corrige uma injustiça que há muito vem sendo feita a esse grande crítico e teórico brasileiro.
Organizado pelo estudioso Carlos Augusto Calil, o volume de 269 páginas reúne ensaios sobre literatura à luz das artes plásticas, tendo como pano de fundo o Oitocentos brasileiro e o início da modernidade.

Abre com um panorama do século XIX e divide os capítulos com ensaios sobre diversificados autores como Lucio de Mendonça, Gonzaga Duque, Henrique Alvim, Cornelio Penna e Jorge de Lima, sempre equilibrando pintura e letras.
Reservo meus comentários, porém, para o capítulo 5 em que se destaca o estudo sobre Esaú e Jacó (1904), um romance tardio de Machado de Assis, e geralmente colocado um pouco abaixo da celebrada tríade formada por Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

Sob o subtítulo “Narrador e personagens diante do espelho”, Alexandre Eulálio classifica a obra Esaú e Jacó como a mais complexa e ambígua da maturidade machadiana e aquela em que a parábola e o apólogo – formas preferidas pelas quais o autor aborda sua ficção – se apresentam de maneira diferente das demais obras, deixando a história de Pedro e Paulo nas mãos de um leitor atônito para “entender” a temática em meio aos elementos narrativos que vão sendo propostos.

As célebres conversas do narrador com o leitor aqui acontecem como nos outros romances, mas “rompendo com a convenção do gênero no seu tempo, o narrador fictício, delegado do autêntico criador, e seu porta-voz, abre o processo mesmo da criação, ao pretender fazer-se acompanhar do leitor às raízes do escrever.” (p. 112) Não sem deixar transparecer a força da criação literária, a crítica à ficção e os embaraços que pode trazer o caminho ficcional e principalmente a crise pela qual a narrativa já estava passando dentro do Realismo. Desse modo, por essas e outras características, Machado de Assis se coloca na vanguarda da narração de ficção de seu tempo.

Eulálio lembra, a propósito, como o narrador, seguindo o “gosto floreal do modern style [....] cria uma moldura caligráfica que ao mesmo tempo separa e integra, num movimento de ida e volta, o absoluto da criação romanesca e a relatividade do seu existir em livro.” (p. 120) As ações do livro vão sendo acompanhadas, por um lado, pela escrita do diário pelo Conselheiro Ayres e, por outro, constroem a narrativa ajudadas pelos comentários junto ao leitor.

O caso dos gêmeos Pedro e Paulo – cerne de Esaú e Jacó – lembra a Alexandre Eulálio o conto “O espelho”, do próprio Machado, e me lembra outro conto – “Trio em lá menor” – em que a protagonista Maria Regina não se decide entre dois pretendentes e termina em longos pensamentos em busca do absoluto. É a dialética do duplo, ou de duas almas que aparecem divididas pelo eterno problema existencial e trabalhadas em forma de metáfora na ficção machadiana.

O artigo de Alexandre Eulálio sobre o romance de Machado, por si só, vale pelo livro todo, dá oportunidade ao leitor de entrever o talento crítico-criativo do autor e me lembra a frase de Luiz Costa Lima: “O crítico não é nada se não tem, como o poeta, o impulso ficcional”. Eulálio tinha.
Na dúvida, porém, “o melhor é ler com atenção”. Assinado: Machado de Assis.

9/11/2012

A MULHER NO SÉCULO DAS LUZES

Émilie Émilie - a ambição feminina no século XVIII
Elisabeth Badinter
Trad. Celeste Marcondes
Paz e Terra/Discurso Editorial/Duna Dueto.


O que mais se identifica com o século XVIII europeu do que a máxima de Hegel: “Nada de grande se faz jamais sem paixão”? Assim, tudo que, em tempos passados, representava equilíbrio e indiferença às vicissitudes da vida foi afastado em prol de uma nova moda que era viver sob a ótica do amor e das emoções.

O Setecentos trouxe não só o progresso das ciências, a Revolução Industrial, a Ilustração e a Encyclopédie, como o nascimento do romance como gênero literário popular em substituição às liras pastoris, epopeias e histórias de feitos virtuosos.

Por outro lado, o poder dos reis ainda no auge e a aristocracia brilhando nos salões retratam tanto esse século quanto o início de uma classe em ascensão: a dos burgueses.

Como tempero a essas transformações que iriam alterar o curso da história, a vida de duas mulheres notáveis – as primeiras pensadoras – mexe com a nossa curiosidade ao ler a obra de Elisabeth Badinter Émilie Émilie - a ambição feminina no século XVIII, edição tríplice da Paz e Terra, Discurso Editorial e Duna Dueto.

Tendo como pano de fundo o Século das Luzes, a história de duas damas da aristocracia francesa – Madame de Châtelet e Madame d’Epinay, ou simplesmente Émilie e Louise – é magnificamente descrita no ambiente de sedução e de lances de fingimento e coragem na Corte.

A historiadora francesa Elisabeth Badinter deu ao seu trabalho, por um lado características de pesquisa séria, por outro uma tonalidade romanesca que o torna de sabor inigualável para leitores exigentes de todas as idades e gostos. Ler este livro é penetrar nos salões imperiais dos tempos do Iluminismo.

9/10/2012

SOBRE LUIZ BACELLAR

O texto a seguir é uma homenagem feita pelo escritor Adrino Aragão ao grande poeta amazonense Luiz Bacellar, falecido no dia 08-09-2012 aos 84 anos.



Carpintaria poética

Adrino Aragão


Luiz Bacellar é, dentre os expressivos poetas amazonenses, o mais aclamado pelas elites, estudantes e populares de Manaus. Mas, ao contrário do que possa parecer, sua poesia não é tão simples, de fácil consumo. Artesão da palavra, carpinteiro do verso, Bacellar constrói cada poema com rigor formal e forte densidade temática, numa linguagem refinada, primorosa.
Como explicar o sucesso de um poeta sério como Luiz Bacellar que não faz poesia em função do mercado? Mistérios da poesia, da arte? Talvez. Quem sabe uma resposta ao mercado do livro que aí está: a boa literatura brasileira existe; há, sim, leitores para a poesia, o conto, o romance, a novela de nossos escritores.
A verdade é que são 50 anos de trabalho poético de Luiz Bacellar. Frauta de barro, seu livro de estreia, na correta afirmação do poeta e crítico literário professor Tenório Telles, “é um marco na evolução da literatura que se faz no Amazonas”.
De formação clássica e espírito de renovação estética modernista, Bacellar pôde construir, com admirável liberdade (já a partir desse livro) algo de novo na dicção lírica de sua poesia. E que haveria de se ampliar em livros posteriores. Canta o poeta em “Variações sobre um prólogo”: “Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então; // rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranquila/ como água por um gargalo. // E mesmo que toda a gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro, // não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro.// É o tema recomeçado/ na minha vária canção.”
Enquanto muitos destroem o passado com a ânsia de criar o novo, o moderno, o poeta Luiz Bacellar mantém forte diálogo com a tradição, elege a memória como tema em muitos de seus textos poéticos. Sem saudosismos. O passado tem o sentido de memória, de registro - seja de denúncia ou crítica (quase sempre bem-humorada) contra o silêncio do descaso, do abandono, da “insanidade de um presente” que flagela e aniquila as fontes de nossa história. Como nos versos de “Balada da rua da Conceição”: “Vão derrubar vinte casas/ na rua da Conceição./ Vão derrubar as mangueiras/ e as fachadas de azulejo/ da rua da Conceição./ (Onde irão morar os ratos/ de ventre gordo e pelado?/ e a saparia canora da rua da Conceição?” O poeta, por vezes, estende o olhar sobre gentes humildes, os esquecidos, como em “Lavadeiras”, poema do mais fino lirismo, comparável a de um Jorge de Lima: “A roupa nos varais panda flutuando,/ com seus laivos de anil coando a brisa,/ até parece ávida nau cortando/ o mar azul que a leve espuma frisa.// O vento timoneiro vai guiando/ e o sol nas bolhas de sabão se irisa/ enquanto as lavadeiras vão cantando/ a torcer e a bater na tábua lisa”. Aliás, como um Midas, Bacellar consegue transformar em filigranas de poesia as coisas mais comuns, por exemplo, um simples isqueiro, vejam: “Se, na pedra, acordo estrelas/ com um golpe do polegar,/ a chama, só para vê-las,/ já se levanta a bailar”.
Frauta de barro tem ainda outro mérito. Deu ao poeta Luiz Bacellar o prêmio Olavo Bilac, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro (1959). Na comissão julgadora do concurso estavam dois dos maiores poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Pode haver reconhecimento maior que este, para qualquer escritor?
Mas Luiz Bacellar não é poeta de um livro só. Outros foram publicados. Cada um deles revela, de modo surpreendente, a performance desse poeta que tece poesia de altíssima qualidade.
Sol de feira é outro grande momento literário de Luiz Bacellar. Para início, o tema é originalíssimo, senão inusitado, na poética brasileira. Professor Ernesto Renan Freitas Pinto considerou o livro um “pomar real” que “nos ensina a admirar e saborear a rica coleção dos frutos da terra”. Vejo-o como telas do mais belo impressionismo. Mas, às vezes, parece escorrer, do rondel de cada fruta, um sumo mágico de canções: é quando me sinto arrebatado pelos acordes de uma sinfonia de Bach ou Handel. Por que não de Villa-Lobos? Como nos versos de “rondel da pitanga”: “Gracioso arbusto/ de folhas breves/ todo adornado/ de frutos leves/ como as caboclas/ do meu torrão/ e as notas loucas/ do meu violão// rubras miçangas/ rubis talhados/ de viva cor/ sois vós pitangas/ cristalizados/ beijos de amor”.
Há mais, muito mais. Por exemplo, um belíssimo poema musical longo, dividido em 33 partes – ou, como declara o poeta, sonata em si bemol menor para flauta, fagote, clarinete e oboé. Inclusive uma boa safra de haicais, em que o poeta reafirma o seu talento criativo. “Rajadas de chuva/ sobre o teto de alumínio:/ sons da lua cheia.” “Como um prisioneiro/ a lua me espia pelas/ grades do banheiro.” “Água resmungona.../ No tanque limoso/ o pulo da rã.” (Bashô)
A Editora Valer publicou (1998) as obras de Luiz Bacellar, reunidas em um só volume, com o título de Quarteto.
Vale a pena ler Luiz Bacellar. E conhecer, através de seus poemas, a trajetória luminosa do poeta amazonense, que atingiu o estado de excelência na poesia brasileira. Mais que isto. Ultrapassou a barreira do preestabelecido: ao lidar com elementos tradicionais, aprofunda o exato conceito de modernidade.

(foto cedida por Rogelio Casado)