12/10/2016

UM FICCIONISTA DE LOND



Jair Ferreira dos Santos

Resenha que publiquei em jornal pelos idos de 1981, quando eu trabalhava na revista "Cacex" com o autor do livro, Jair F. dos Santos:

"Kafka na cama", de Jair Ferreira dos Santos, marcou em 1980 a estreia de um escritor cuja trajetória já dava para antecipar como das mais auspiciosas para a literatura brasileira.
Reuniu o autor sete contos (a rigor, seis contos e uma novela), que, numa primeira abordagem, apresentam um divisor de águas que marca especialmente o conjunto das narrativas. Nascido no Paraná, região de Londrina, Jair Ferreira dos Santos transferiu-se na década de 70 para o Rio, e esse ponto divisório, marcado pelo eixo Londrina/Rio, atua como fulcro, ora dividindo os caminhos da narração, ora propondo rotas para uma visão crítica.
Daí derivam duas ficções – advindas das ambiências, dos personagens, do plot – a influir na própria linguagem e esta em cada estória.
Do eixo Londrina, vem a primeira, uma ficção de temas, ação e traços da província (a família, no fundo), terreno em que a introspecção se sedimenta sob um léxico forte e bem jogado.
"Mais para Gardel do que para o bardo inglês", "Sextuor: o pai" e "Anjos" estão desse lado do rio. A província – e não o regional conduzindo ao “facilmente” social – aí pulsa, “torpe, mas hílare”, como nestes fragmentos:
“À noite, em casa, pensei que diante dos filhos o casal se recuperasse moralmente. Pobre de mim! Separados são sórdidos, perto são pérfidos. Fogo e gelo.”
“Pouca água correu. A vida aqui, não é preciso ser nenhum Houdini para adivinhar, segue naquele ritmo pantanoso de sempre. De tão pequenas que nem dá gosto mencionar, duas novidades: voltei a estudar violão e estou com hemorróidas.”
Nas descrições, a terra e a natureza recriam-se plasticamente e por si sós, movendo-se ora e vez pelo olho atento de uma câmera invisível:
“Logo o sol dará à cidade, no horizonte, a aparência arenosa de um traço a pastel, um aceno. Mas ele é rijo e sem olhar para ela segue a caminho do Sul.”
Ou nesta visão meio nostálgica, um tanto à Salinger e/ou Saroyan:
“Havia guerra do outro lado do mundo e fora por ruas diferentes daquela terra vermelha, forte, barrenta, que ambos tinham chegado a L., em meados dos anos 40.”
Mais adiante a província se abre inteira dentro do cotidiano:
“...coisas na memória dela amontoadas ao acaso como cartas de jogar, eles tiveram mesmo de se casar, para acabar com os falatórios e os rubores do seu corpo.”
A dedicatória do livro reforça mais ainda a preocupação do autor com a dualidade província-metrópole, quando os advérbios aqui e lá introduzem e separam as homenagens ao clã local e aos novos amigos do Rio.
Mas de novo nos fixamos no filão de Lond.(ou Land. ou Londrina). Aqui, subjacente, um caminho se percorre e se desdobra mais uma vez: o do romancista que pode surgir e que nos parece de fôlego e correnteza represados em "Sextuor: o pai".
Os diques colocados nesta novela à maneira de divisões de capítulos são marcas de condensações de um romance que só deixou de crescer para se acomodar ao livro como conjunto de 'contos reunidos'. Embora não deixe de compor um todo orgânico com os demais contos, "Sextuor: o pai" é em si um painel completo (mesmo comprimido) para onde convergem todos os dramas que a província amesquinha e amplifica. “É vivendo aqui em Land., que só tem a crescer na sua mediocridade. Dezenas de casais como nós enfiando a cabeça pelas frestas dos baronetes do café.”
Também é ao falar da terra que vêm as melhores descrições da paisagem paranaense, e é nelas que o autor deixa transparecer a vocação poética:
“Neblina como echarpes preguiçosas na copa das árvores à margem da lagoa. Depois vinha o sol branco, sorridente, cheio de revelações. Os pastos, as vacas, as amoreiras”.
E mais ainda as descrições vão se adensando para brilhar na noite:
“É noite, meu pai. Lá fora, para nosso embevecimento, há um céu de maio que parece sustentar-se apenas na sua pureza, com uma Lua cabeceante a leste entre duas constelações. Estamos em Touro, sob o domínio suave de Vênus. Hydra navega desdenhosamente próxima de Leo, enquanto Antares, no centro da noite, brilha girando sobre si mesma como uma noiva em festa. Eis a trama dos astros para o fim desse outono de nossa desesperança.”
Em busca da vida em seus detalhes, o ficcionista procura definições, sonda nuances, “na calma febril da memória, com aqueles anos destroçados entre os dedos, anos sem clareza, sem destino e que, se tinham sido perdidos tão abusada, tão levianamente, pelo seu pendor a culpas à menor sombra de logro ela merecia que não lhe trouxessem alento nem proteção contra a morte pestanejante às suas costas.”
Outras vezes Jair Ferreira tira do prosaico o poético ou o prosaico dele mesmo:
“A cozinha com suas facas de dois gumes.”
Ou aqui, meio à Oswald de Andrade:
“Os requintes dela tinham sido vestidos de crepe, sianinha, sutache, tailleurs de linha para casamentos e batizados, boleros para esporte e às vezes um turbante enrolado com jeito e romantismo meio a uma nuvem de talco Ross e água-de-colônia.”
Em Lond. estava centralizada a vida da burguesia do café e da terra roxa do Paraná, e ali novas relações se faziam:
“Nascer em Land e ser artista de teatro. Só faltava essa. Diverte-se porque Ariel não é capaz de imaginar a mulher que for sua mulher sem cozinha de aço, aspirador de pó, seguro de vida e uma reconfortante conta conjunta como prêmio para proezas na cama.”
“Já tem morte de sobra rondando sobre nós. Sinto. Morremos em nossa família. Dois irmãos há muito tempo. Por isso mesmo, já era hora. Dois ciprestes bem altos atrás do túmulo deles. No outono ficam escuros e tristes. Ariel prometeu pintar o túmulo para novembro. Longe demais.”
A outra parte anteriormente mencionada – constituída por "Dan & Dan: exercícios de Narciso", "De tarde", "Kafka, na cama", "Joel Sad ou Week-end mais ou menos à Saroyan" e "Xique & Jô/Ousada pecinha fratricida" –, pertence a uma linha urbana. É a vertente carioca. Esses contos mostram uma sintaxe peculiar que é a teia em que corretamente se “inscreve” e acontece sua narrativa curta.
E o circuito se transforma num jogo em que um gato e seu dono – Dan e Dan – se enrolam numa amizade perfeita, no conto "Dan & Dan: exercícios de Narciso", de todos o mais bem realizado no plano da linguagem.
“(...) não era nem persa nem angorá nem siamês nem espanhol, mas um preguiçoso novelo de pelúcia cor-de-rosa (Dan tingira-o) acidentalmente estendido sobre ossatura e vísceras de procedência ignorada.”
"De tarde, Kafka, na cama", de fachada erótica, transmite a todo tempo um humor resvalante para o cinismo:
“– Vocês têm filhos?
– Não e não é triste. Seriam pessoas a mais a quem mentir.
– É sempre assim com você? Não há nada que você aceite sem bancar a serpente?
– Uma boa cama.”
Em "Joel Sad", há o encontro do personagem-título com o guarda do aeroporto e o tête-a-tête com a prostituta. Merece transcrição.
“(...) ele teve de se recompor quando achou que o guarda do portão de embarque, com a fatalidade de uma máquina a realizar o seu trabalho, caminhava na sua direção. O guarda passou. A ansiedade ficou. Relax, imbecil. Liberdade não é vigia. O guarda do guarda. Ad infinitum."
“Ela tirou a roupa com a rapidez de ilusionista e o que era mulher converteu-se numa ave gorda, implume, tatuada do joelho à nuca com tranças de celulite.”
E o diálogo cortante, com a saída pela tangente:
“– Você tem mãe?
– Mãe está fora de moda – não sabia por que respondeu Joel.”
A Joel restava – no abandono de um dia inteiro vagando pela cidade grande – ver a “decolagem de aviões no Santos Dumont. Arrebatado por eles, pelo seu dom de repouso no ar, talvez recuperasse um pouco a tolerância consigo (...)”
Quase todo num diálogo acre é "Xique & Jô/ousada pecinha fratricida", em que os personagens são um corcunda paralítico e seu periquito, em clima surreal.
“Jô: Aquecimento, Xique. Circuit training. Poesia faz bem. É a ginástica da alma.
Xique: E a fome?
Jôz: É a prosa.”
Ou ainda na definição de Jô:
“A felicidade. A velha cenoura que apodrece cada vez mais longe do nariz. Quem disse que eu quero ser feliz?”
E neste que poderia ser um desfecho, com pano rápido, no auge do pessimismo:
“Xique: Eu te mato (vários soluços)
Jô: Você não me faria esse favor (...)”

Bibliografia: SANTOS, Jair Ferreira dos. Kafka na cama. Rio de Janeiro: CivilizaçãoT Brasileira, 1980.