11/11/2017

NAS MÃOS DA INSÔNIA E DA MEMÓRIA





As poucas vezes em que enfrentei a insônia passei por instantes ruins de nervosismo e impaciência.
Imagino o que pode ser um problema desses se se tratar de inumeráveis desses momentos a se repetirem quase todas as noites.

Cida Rezende é "habituée" da insônia e reflete isso em suas crônicas de "Não apague a luz ainda", título em que, utilizando uma única palavra (a última), revela-se toda a angústia de quem prevê uma noite difícil e por isso é preciso retardar o sofrimento.
Só que ela aprendeu a enfrentar a vigília... escrevendo, e – segundo a própria – assim consegue escapar dos conhecidos remédios para ansiedade e outras mazelas que afligem o ser humano.

A literatura universal – de Proust a Stephen King, de Tchecov a Graciliano Ramos (este último tem até um livro com esse título), lista à qual não poderia faltar o argentino Jorge Luis Borges – é rica na temática, não fosse grande o número dos artistas frequentadores da noite e seu silêncio para as criações literárias. Num de seus contos, Borges, viajando em suas poéticas abordagens, assim define o sono: "Dormir é distrair-se do mundo".

"Não apague a luz ainda" é um conjunto de crônicas de Maria Aparecida Resende Lacerda sob os temas da insônia e da memória, tratando-os, na maioria das vezes, tão leve e distraidamente que o leitor pode ser pego embarcando na mesma viagem da autora. Para isso contribui uma linguagem equilibrada e bem dosada que envolve e pede mais leitura a cada fragmento lido.

A primeira crônica "Foi assim", no entanto, mostra os primeiros enfrentamentos por meio dos quais a autora parece lutar fisicamente contra inimigos mortais e invisíveis ao mesmo tempo, como se antecipasse a vinda de um pesadelo cruel.
À medida que a escritura avança, como em "Entregando os pontos", a protagonista-autora descobre que, se for se soltando aos poucos nas mãos da insônia será melhor, como num doce martírio que acaba consumindo sem se sentir mais nada.
Os "canarinhos da terra" são protagonistas de "Opressão" e personificam o gênero humano em sua alegria e crueza, transvestidos de metáforas do homem em sua muitas vezes terrível miséria moral. Seres tão frágeis e bonitos, de repente, parecem se banalizar para "viver" personagens que a autora trabalha não como marionetes, mas como figuras que aos poucos vão criando vida própria e já não dependem do criador.

Percebi então, nessa altura da leitura do livro, que Cida não reuniu apenas crônicas dentro de um tema X, mas alcançou algo mais do que o gênero crônica e chegou a uma narrativa real-ficcional em capítulos, por meio de textos encadeados que se complementam e se sucedem naturalmente. Aí está a maior virtude do livro, a meu ver.

"Boa noite" e "Asas de anjo" formam um recorte para introduzir cenas da infância da autora a reviver momentos de saudade, sempre com cuidadoso uso da linguagem.
Bem mais à frente, ocorre um retorno ao tema da insônia, como se aqueles fossem quadros pelos quais a memória entressonhou a vida passada na mineiridade das coisas simples.
Essas crônicas inauguram uma série de reminiscências infantis e juvenis através de textos bem resolvidos e estruturados.
Na parte final, "Sono" retoma o fio que parecia perdido, como se a insônia reclamasse por algo que ficou no passado, e é isso mesmo, pois retornam os textos sobre a insônia que se encerram depois com "No silêncio".

Vale, para terminar, transcrever um fragmento que envolve "infância" e "insônia", como se ambas se juntassem para representar o passado e o presente tão bem urdidos e justapostos neste livro:

"Agora, tantos anos passados, aproveito minhas noites de vigília para reviver esses momentos e, com a inocência e delicadeza das crianças, visto minhas asas e vou ao encontro de outros anjos que foram embora e me deixaram para trás..."




11/02/2017

Conto "O ARQUIVO", de Victor Giudice



O ARQUIVO
– Victor Giudice

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.
joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior:
dezessete por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora, joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou. Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais, duas horas diárias.
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
– Seu joão. Nossa firma tem urna grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
– Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
– Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
– De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se nun trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência:
A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
– Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um liquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:
– Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.
O chefe não compreendeu
– Mas, seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão transformou-se num arquivo de metal.

(in GIUDICE, Victor. Necrológio. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1972, p. 1-6)
Victor Giudice, grande contista brasileiro (1934-1997) Foto de Verônica Peixoto, agência O Globo.
Obras:Necrológio (1972).[1]
Os banheiros: contos (1979).[2]
Museu Darbot e outros mistérios (1994), vencedor do Prêmio Jabuti de 1995.
Salvador janta no lamas: contos (1989)