Só os verdadeiros ficcionistas têm o segredo da criação dos grandes personagens, baseiem-se eles ou não em algo de suas próprias vidas.
Mas o que aconteceu a Manuelzão escapa até ao previsível.
Manuelzão vivia no norte de Minas, era um vaqueiro daqueles embrenhados no sertão e às voltas com o gado e a roça. Um dia, conheceu um tal de dr. João Rosa, a quem contou suas estórias. Tempos depois, se transformou num personagem famoso, pois o doutor que havia conhecido era nada mais nada menos do que o grande escritor brasileiro João Guimarães Rosa.
Descoberto pela mídia após a morte de seu ´criador´, Manuelzão conheceu a grande cidade, fez sucesso em entrevistas de jornais e revistas e até na tv, com aquela sua maneira simples de contador de 'causos', de físico quixotesco e jeitão mulherengo.
Certo dia, porém, morreu o nosso herói.
Foi então que o contista Adrino Aragão resolveu contar como foi o dia em que morreu Manuelzão. E não é que Manuelzão, bebendo um fiozinho da prosa poética do autor amazonense, tomou vida e voltou às páginas de um novo livro, como personagem recriado pelo Adrino.
O livro se chama No dia em que Manuelzão se encantou – uma novela em que o autor narra os últimos dias do nosso Cavaleiro das Gerais fora do seu habitat.
É prosa, mas beira a poesia, e não poderia ser de outro modo ao se colocarem par a par o contista-poeta Adrino Aragão e um personagem especial de Guimarães Rosa, ou João Rosa, como o chamavam os vaqueiros de Minas.
Manuelzão, que havia saído da ficção de João Rosa para os bastidores da vida, para as entrevistas de rádio, televisão, jornais e revistas, agora faz o caminho inverso. Volta, depois de morto, definitivamente ao universo ficcional – de outro escritor –, transforma-se em personagem de uma nova estória.
No dia em que Manuelzão se encantou narra os últimos dias de Manuelzão no quarto de sua casa, após deixar o hospital, assistido pela mulher Rosalina. É lá que, entre lençóis e remédios, sente saudades do sertão, das veredas e dos animais, da vida aventurosa de cavaleiro das Gerais.
Longe da cavalgada e das proezas, no seu leito de morte, Manuelzão, através do habilidoso discurso indireto livre do narrador, revive o périplo que era sua vida e se sente agora deslocado. “O sonho de Manuelzão era poder morrer montado no cavalo, tocando boiada pelas veredas do sertão” (p. 23). Um verdadeiro cavaleiro não poderia morrer assim.
E agora estava ali, embalado pelo passado, lembrando a festa de inauguração da capelinha de Samarra, sonhando com o amor impossível de Leonísia, dormitando bem na fronteira onde termina o real. O voo de um passarinho que entra no seu quarto é mais do que um presságio: parece o preâmbulo do poético rondando a delicadeza e a magia do instante que precedeu à sua morte.
Comparecem algumas visitas ao quarto do doente: uma repórter de jornal que recebe os galanteios do velho vaqueiro, seus companheiros do Grande sertão e de Corpo de baile e o próprio autor. Manuelzão se emociona, fala com o matador Cara-de-Bronze, se enternece com Diadorim e Riobaldo, mas a cena final é reservada para o ‘criador’ João Rosa, o homem das letras e também o ouvinte atento que tudo anotava e o tornou famoso.
Em poucas e belas páginas, Adrino recria um Manuelzão trazido da legenda rosiana e de uma breve passagem pelo sucesso na cidade grande.
Adrino Aragão, em sua pequena novela, não reproduz a saga ou a linguagem rosiana. Mais do que isso, produz um texto independente e de rendilhado fino e sutil, cujo resultado é a magia desta pequena estória, certamente uma joia que dialoga com as veredas do grande sertão ficcional de Guimarães Rosa.
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