SILÊNCIO, VAI COMEÇAR A MÚSICA DA POESIA
Joaquim Branco
Enquanto se prepara a edição de Toda a poesia, de Francisco Marcelo Cabral, gostaria de comentar
algo sobre seu livro há muito (a)guardado, Pedra
de sal. O título estava mesmo destinado a não vir a lume, pois acabou
alterado para Baile de Câmara, e
publicado em 1993 pelo próprio autor, em tiragem mínima e semiartesanal. Assim,
apenas 40 privilegiados tiveram acesso a sua leitura.
Mas, o que levou Marcelo Cabral a trocar a Pedra pelo Baile,
o Sal pela Câmara? À primeira vista e por uma solução simplista, se poderia
responder que esses nomes são também os de dois poemas da coletânea, e que a
escolha, recaindo sobre um deles, simplificaria a questão. Volta a insistente
pergunta: mas o que realmente o teria levado à troca? O tempo passou – 43 anos –
alguns poemas sofreram mudanças, sempre para menos. O primeiro, "Pedra de
sal", é o de n° 3, página 3:
"Ai, Minas de antiga pedra,/ velhice do chão, ai, Minas,/
colhi nas tuas colinas/ a flor do cristal, que medra,/ mergulhando veios de
ouro/ na rocha macia e aberta,/ e ei-la, uma aurora desperta,/ no diadema do
touro". (Cabral, 1993, p. 3)
Em texto curto, evocativo, o poeta se dirige a Minas na
interjeição sofrida e pedregosa, colhe a flor, procura o "veio de
ouro" para, no final, encontrar um recomeço na aurora. O segundo tem o
número 13, "Baile de Câmara", página 15:
"Não me é fácil dizê-lo, mas imagina, uma noite,/ o
fundo silêncio que há no fundo/ do vasilhame da cozinha, agora em repouso nos
armários,/ guardando ainda o cheiro de tudo o que hoje serviu/ para abrandar o
corpo, iludindo-lhe a fome;/ e pensa no animal que se enrola/ junto a teus pés,
este morno segredo/ que toda carne encerra, gravemente;/ pensa na voz dos
pássaros, de repente represa,/ quando a aurora é ainda menos que uma estrela/
descorando no céu, junto à linha dos montes;/ e o raso silêncio que há no chão,
povoado de vermes,/ não sentes que no chão, dentro dele, se formam/ as
delicadas vias de acesso?/ Como espera, pois, outros sinais/ que os mudos
acenos, gestos recolhidos/ com pudor de ternura? Às vezes, este pássaro/ é tão
somente uma figura debuxada:/ nem sequer lhe pertence para o voo/ a linha das
asas, leves como os das alturas./ Tudo é assim: suspenso. Tanques e piscinas,/
naufraga a mancha verde de uma anêmona,/ mas tu sabes dos pequeninos peixes que
se agitam,/ e é claro que provaste o ácido prazer do limo,/ ou seria impossível
que eu te estivesse falando/ como se fosses a lagarta colorida/ e eu, a muda
vibração dos bordos de uma folha,/ ao sopro desta brisa leve". (p. 15)
Também escrito em 2ª pessoa, porém bem mais longo, o poema
remete a alguém a quem se dirige o eu-lírico do poeta. Vou ao dicionário:
"Baile de Câmara". Não há registro. Lembro-me de "Música de
Câmara". Sem necessitar, consulto novamente o dicionário: "Qualquer
música vocal ou instrumental destinada a um pequeno auditório, a um solista, ou
a pequenos agrupamentos de solistas, como, por exemplo, a sonata para um ou
vários instrumentos (...)"
O magro volume, com apenas 30 poemas e preparado para um
público reduzidíssimo (40 leitores), emite um solo apurado em rara melodia,
enfeixada em papel especial. Mato a charada. "Baile de Câmara", um
baile para poucos convidados. A fala em 2ª pessoa prevê um duo, que desliza em
passos pelo salão ante um seleto auditório. O cerne da coisa é conduzido pela
mão da linguagem, não sem mistério, segredo para chegar à poesia. Complementam
a noite, o ambiente: silêncio. Ao fundo, a imaginação viaja. Do vasilhame da
cozinha, que serviu à fome humana, ao animal e aos pássaros com suas vozes, até
o chão onde se arrastam os vermes, e de volta às estrelas para encerrar com os
pequeninos peixes, o poeta mergulha nas coisas e nos seres. Pergunta. Procura.
E – folha que é – só recebe como resposta uma "brisa leve". A
conclusão, paradoxalmente, já tinha vindo antes, no fragmento: "Tudo é
assim: suspenso". Os motivos agora se aclaram. O poeta, à evocação da
terra, preferiu o debuxo do pássaro, sem o leque das asas, e o momento que
passa, ou o vento, que, leve, deixa apenas o sopro na paisagem.
Notas bibliográficas:
CABRAL, Francisco
Marcelo, Baile de Câmara - poemas. Rio de Janeiro: Edição Sub Rosa, 1993.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.
*Jornal GAL ART •
Cataguases/MG • Agosto/2003
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