12/26/2024

SOBRE FRANCISCO MARCELO CABRAL

 

SILÊNCIO, VAI COMEÇAR A MÚSICA DA POESIA

Joaquim Branco



Enquanto se prepara a edição de Toda a poesia, de Francisco Marcelo Cabral, gostaria de comentar algo sobre seu livro há muito (a)guardado, Pedra de sal. O título estava mesmo destinado a não vir a lume, pois acabou alterado para Baile de Câmara, e publicado em 1993 pelo próprio autor, em tiragem mínima e semiartesanal. Assim, apenas 40 privilegiados tiveram acesso a sua leitura.

Mas, o que levou Marcelo Cabral a trocar a Pedra pelo Baile, o Sal pela Câmara? À primeira vista e por uma solução simplista, se poderia responder que esses nomes são também os de dois poemas da coletânea, e que a escolha, recaindo sobre um deles, simplificaria a questão. Volta a insistente pergunta: mas o que realmente o teria levado à troca? O tempo passou – 43 anos – alguns poemas sofreram mudanças, sempre para menos. O primeiro, "Pedra de sal", é o de n° 3, página 3:

"Ai, Minas de antiga pedra,/ velhice do chão, ai, Minas,/ colhi nas tuas colinas/ a flor do cristal, que medra,/ mergulhando veios de ouro/ na rocha macia e aberta,/ e ei-la, uma aurora desperta,/ no diadema do touro". (Cabral, 1993, p. 3)

Em texto curto, evocativo, o poeta se dirige a Minas na interjeição sofrida e pedregosa, colhe a flor, procura o "veio de ouro" para, no final, encontrar um recomeço na aurora. O segundo tem o número 13, "Baile de Câmara", página 15:

"Não me é fácil dizê-lo, mas imagina, uma noite,/ o fundo silêncio que há no fundo/ do vasilhame da cozinha, agora em repouso nos armários,/ guardando ainda o cheiro de tudo o que hoje serviu/ para abrandar o corpo, iludindo-lhe a fome;/ e pensa no animal que se enrola/ junto a teus pés, este morno segredo/ que toda carne encerra, gravemente;/ pensa na voz dos pássaros, de repente represa,/ quando a aurora é ainda menos que uma estrela/ descorando no céu, junto à linha dos montes;/ e o raso silêncio que há no chão, povoado de vermes,/ não sentes que no chão, dentro dele, se formam/ as delicadas vias de acesso?/ Como espera, pois, outros sinais/ que os mudos acenos, gestos recolhidos/ com pudor de ternura? Às vezes, este pássaro/ é tão somente uma figura debuxada:/ nem sequer lhe pertence para o voo/ a linha das asas, leves como os das alturas./ Tudo é assim: suspenso. Tanques e piscinas,/ naufraga a mancha verde de uma anêmona,/ mas tu sabes dos pequeninos peixes que se agitam,/ e é claro que provaste o ácido prazer do limo,/ ou seria impossível que eu te estivesse falando/ como se fosses a lagarta colorida/ e eu, a muda vibração dos bordos de uma folha,/ ao sopro desta brisa leve". (p. 15)

Também escrito em 2ª pessoa, porém bem mais longo, o poema remete a alguém a quem se dirige o eu-lírico do poeta. Vou ao dicionário: "Baile de Câmara". Não há registro. Lembro-me de "Música de Câmara". Sem necessitar, consulto novamente o dicionário: "Qualquer música vocal ou instrumental destinada a um pequeno auditório, a um solista, ou a pequenos agrupamentos de solistas, como, por exemplo, a sonata para um ou vários instrumentos (...)"

O magro volume, com apenas 30 poemas e preparado para um público reduzidíssimo (40 leitores), emite um solo apurado em rara melodia, enfeixada em papel especial. Mato a charada. "Baile de Câmara", um baile para poucos convidados. A fala em 2ª pessoa prevê um duo, que desliza em passos pelo salão ante um seleto auditório. O cerne da coisa é conduzido pela mão da linguagem, não sem mistério, segredo para chegar à poesia. Complementam a noite, o ambiente: silêncio. Ao fundo, a imaginação viaja. Do vasilhame da cozinha, que serviu à fome humana, ao animal e aos pássaros com suas vozes, até o chão onde se arrastam os vermes, e de volta às estrelas para encerrar com os pequeninos peixes, o poeta mergulha nas coisas e nos seres. Pergunta. Procura. E – folha que é – só recebe como resposta uma "brisa leve". A conclusão, paradoxalmente, já tinha vindo antes, no fragmento: "Tudo é assim: suspenso". Os motivos agora se aclaram. O poeta, à evocação da terra, preferiu o debuxo do pássaro, sem o leque das asas, e o momento que passa, ou o vento, que, leve, deixa apenas o sopro na paisagem.

Notas bibliográficas:

CABRAL, Francisco Marcelo, Baile de Câmara - poemas. Rio de Janeiro: Edição Sub Rosa, 1993.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.

 *Jornal GAL ART • Cataguases/MG • Agosto/2003



 

 

 

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