12/26/2024

SOBRE FRANCISCO MARCELO CABRAL

 

SILÊNCIO, VAI COMEÇAR A MÚSICA DA POESIA

Joaquim Branco



Enquanto se prepara a edição de Toda a poesia, de Francisco Marcelo Cabral, gostaria de comentar algo sobre seu livro há muito (a)guardado, Pedra de sal. O título estava mesmo destinado a não vir a lume, pois acabou alterado para Baile de Câmara, e publicado em 1993 pelo próprio autor, em tiragem mínima e semiartesanal. Assim, apenas 40 privilegiados tiveram acesso a sua leitura.

Mas, o que levou Marcelo Cabral a trocar a Pedra pelo Baile, o Sal pela Câmara? À primeira vista e por uma solução simplista, se poderia responder que esses nomes são também os de dois poemas da coletânea, e que a escolha, recaindo sobre um deles, simplificaria a questão. Volta a insistente pergunta: mas o que realmente o teria levado à troca? O tempo passou – 43 anos – alguns poemas sofreram mudanças, sempre para menos. O primeiro, "Pedra de sal", é o de n° 3, página 3:

"Ai, Minas de antiga pedra,/ velhice do chão, ai, Minas,/ colhi nas tuas colinas/ a flor do cristal, que medra,/ mergulhando veios de ouro/ na rocha macia e aberta,/ e ei-la, uma aurora desperta,/ no diadema do touro". (Cabral, 1993, p. 3)

Em texto curto, evocativo, o poeta se dirige a Minas na interjeição sofrida e pedregosa, colhe a flor, procura o "veio de ouro" para, no final, encontrar um recomeço na aurora. O segundo tem o número 13, "Baile de Câmara", página 15:

"Não me é fácil dizê-lo, mas imagina, uma noite,/ o fundo silêncio que há no fundo/ do vasilhame da cozinha, agora em repouso nos armários,/ guardando ainda o cheiro de tudo o que hoje serviu/ para abrandar o corpo, iludindo-lhe a fome;/ e pensa no animal que se enrola/ junto a teus pés, este morno segredo/ que toda carne encerra, gravemente;/ pensa na voz dos pássaros, de repente represa,/ quando a aurora é ainda menos que uma estrela/ descorando no céu, junto à linha dos montes;/ e o raso silêncio que há no chão, povoado de vermes,/ não sentes que no chão, dentro dele, se formam/ as delicadas vias de acesso?/ Como espera, pois, outros sinais/ que os mudos acenos, gestos recolhidos/ com pudor de ternura? Às vezes, este pássaro/ é tão somente uma figura debuxada:/ nem sequer lhe pertence para o voo/ a linha das asas, leves como os das alturas./ Tudo é assim: suspenso. Tanques e piscinas,/ naufraga a mancha verde de uma anêmona,/ mas tu sabes dos pequeninos peixes que se agitam,/ e é claro que provaste o ácido prazer do limo,/ ou seria impossível que eu te estivesse falando/ como se fosses a lagarta colorida/ e eu, a muda vibração dos bordos de uma folha,/ ao sopro desta brisa leve". (p. 15)

Também escrito em 2ª pessoa, porém bem mais longo, o poema remete a alguém a quem se dirige o eu-lírico do poeta. Vou ao dicionário: "Baile de Câmara". Não há registro. Lembro-me de "Música de Câmara". Sem necessitar, consulto novamente o dicionário: "Qualquer música vocal ou instrumental destinada a um pequeno auditório, a um solista, ou a pequenos agrupamentos de solistas, como, por exemplo, a sonata para um ou vários instrumentos (...)"

O magro volume, com apenas 30 poemas e preparado para um público reduzidíssimo (40 leitores), emite um solo apurado em rara melodia, enfeixada em papel especial. Mato a charada. "Baile de Câmara", um baile para poucos convidados. A fala em 2ª pessoa prevê um duo, que desliza em passos pelo salão ante um seleto auditório. O cerne da coisa é conduzido pela mão da linguagem, não sem mistério, segredo para chegar à poesia. Complementam a noite, o ambiente: silêncio. Ao fundo, a imaginação viaja. Do vasilhame da cozinha, que serviu à fome humana, ao animal e aos pássaros com suas vozes, até o chão onde se arrastam os vermes, e de volta às estrelas para encerrar com os pequeninos peixes, o poeta mergulha nas coisas e nos seres. Pergunta. Procura. E – folha que é – só recebe como resposta uma "brisa leve". A conclusão, paradoxalmente, já tinha vindo antes, no fragmento: "Tudo é assim: suspenso". Os motivos agora se aclaram. O poeta, à evocação da terra, preferiu o debuxo do pássaro, sem o leque das asas, e o momento que passa, ou o vento, que, leve, deixa apenas o sopro na paisagem.

Notas bibliográficas:

CABRAL, Francisco Marcelo, Baile de Câmara - poemas. Rio de Janeiro: Edição Sub Rosa, 1993.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d.

 *Jornal GAL ART • Cataguases/MG • Agosto/2003



 

 

 

12/21/2024

JOYCE E AS TRADUÇÕES DO "ULISSES"

 

JOYCE PARA “PRINCIPIANTES”

 Joaquim Branco

 

 Nos bares e cafeterias de Paris, nos pubs da Irlanda, nos cursos de literatura da América (incluíndo-se o Brasil),nas associações literárias de Londres, comemora-se, no dia 16 de junho, o “Bloomsday”, o dia de            Bloom, protagonista do romance Ulisses, do escritor James Joyce. Este texto é uma homenagem ao genial autor.

 


Parece estranho associar a obra do maior escritor irlandês do século XX – James Joyce (1882-1941) – a uma leitura mais acessível ao grande público. Mas, podem crer, isso já aconteceu para o leitor brasileiro com a republicação de Ulisses (Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 888 páginas, R$79,90), devido à magistral tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro.

Considerado por muitos críticos como obra máxima da modernidade, o romance Ulisses há anos intriga os leitores pela impermeabilidade de seu texto complexo, cheio de armadilhas e códigos cifrados, de collages e cortes abruptos, de associações rápidas e inusitadas e de um fraseado multilingue.

Sua primeira tradução no Brasil, feita pelo competente filólogo Antônio Houaiss em 1966, só fez aumentar sua fama de livro difícil, cuja arquitetura permanecia dificultosa mesmo para um leitor sofisticado.

O trabalho da professora Bernardina, porém, trouxe uma surpreendente fluência para o texto joyceano, além de uma simplicidade que reedita o Joyce bandalho e anedótico que todos nós gostaríamos de ler e que ficou elíptico no eruditismo e em pequenas diferenças em relação à primeira tradução.

A revista Veja, em comentário do resenhista Jerônimo Teixeira, coteja alguns fragmentos das duas traduções, das quais transcrevemos um em que Houaiss não percebeu a esperteza do expediente utilizado pela personagem Milly, filha do protagonista Leopold Bloom. Vejam como a mesma frase ganha outra conotação nas mãos da professora Bernardina:

 

“O dia em que a peguei na rua pintando as faces para fazê-las coradas.” (A. Houaiss)

“O dia em que a peguei beliscando as bochechas para torná-las vermelhas.” (Bernardina)

 

Há fragmentos em que um realismo muito duro – tipicamente joyceano – se sobrepõe até à escrita cortada e pontilhada de enigmas criada por Joyce:

 

“– Você conhece aquela moça ruiva, a Lily Carlisle?

– Conheço.

– Estava aos beijos com ele na noite passada no quebra-mar. O pai é podre de rico.

– Ela está de barriga?

– É melhor perguntar ao Seymour.

– Seymour um maldito oficial! – disse Mulligan.

Ele acenou com a cabeça em sinal de assentimento enquanto tirava a calça e se levantava, dizendo corriqueiramente:

– As ruivas copulam como cabras.” (p. 24)

 

Criado – a partir do título – com um elo com a Odisseia de Homero, Ulisses é uma trama moderna em que um trio de personagens (Leopold e Molly Bloom e Stephen Dedalus) se move tendo como pano de fundo a cidade de Dublin, na Irlanda, em apenas um dia (16 de junho de 1904) na vida deles. Posteriormente, este dia ficou consagrado como o Bloomsday (Dia de Bloom), que hoje é comemorado com festejos em todo o mundo literário.

Habilitem-se, pois, leitores. Chegou a sua vez de conhecer a obra mais desafiadora do século que passou, escrita com a marca do talento inconfundível de James Joyce.

 

12/16/2024

P. J. RIBEIRO (Pedro José Branco Ribeiro)

 

CRONOLOGIA DA CRIAÇÃO

 

Joaquim Branco




 

Geralmente, a cronologia numa obra de arte mostra a evolução do trabalho do autor em seus estágios progressivos.

Numa sequência de poemas, a existência de datas ainda melhor determina a direção, o faro e a meta a que ele se propõe. Assim acontece com P. J. Ribeiro que reuniu suas produções em “Abstrações de um Tigre” (Edição do autor, capa Fernando Abritta, 1976), dividindo-o em períodos.

O livro começa com poemas discursivos e semilineares, compondo o que o autor chama de “Cantares-Pilares” (1962/6). Aí está a matriz poética e a direção de uma rota:

“O homem talha a sua palma

a sua calma

a sua alma.” (p. 19)

Ou nesse unhappy-end de “Falta de Liberdade”:

“[...] Mas se um dia calasse

pedia à dama da noite

que me amordaçasse

de açoite e tédio.” (p. 10)

Um verso-frase situa o poeta no terreno das ideias:

“Não enxergo o bem, nem o mal.

Também não preciso.” (p. 11)

Nesse primeiro tempo, o tigre rosna, mostra as garras e solta um verbo às vezes gran-diloquente, às vezes tímido. O poeta em seus exercícios apura um método de composição para se cristalizar mais tarde em outras paragens. O Boi transfigurado, dos pastos e das mesas de Minas, na paisagem e na atmosfera interior:

“Os filhos do homem achavam bonito: um boi

no pasto

comendo capim.

Mas não sabiam que o boi

tem filosofia e vida.” (p. 13)

Os pilares do trabalho são ora a construção sarcástica, clara e livre, ora o riso indireto do mineiro, conspirando em silêncio, ora o homem preso à terra, à natureza, e o cunho participante aliado ao veio popular, muito bem explorado.

Na segunda parte, encontramos o aprofundamento de uma técnica e o desdobramen-to dos temas do início, deixando ver momentos super-rápidos, em concreções fulminantes. Abrem-se direções, e são tantas que o leitor precisa parar para se orientar. Leem-se pequenos achados, pedras de toque, como essa:

“minas trabalha em silêncio:

MINASMORE.” (p. 39)

A brisa mineira da frase, chavão, seguida da colagem minasmore, como urna dobradiça de palavras de línguas diferentes, levando intencionalmente a uma arrastada e irônica oralidade, subentendida numa terceira palavra reveladora. 

“Paisagem em Cartões” (1967/68), o segundo estágio: cartões de visita cheios de comparações, enigmas, indo do patético à irritação com certos temas que perturbam a intimidade do poeta. De “O Boi” à “Conquista-Espaço”, o vocábulo é temperado, escolhido e filtrado para um fim útil e rápido que o impulsiona para dentro do poema, como agora, quando a palavra “dia” é montada para plataforma de três outras em identidades fônicas que são mais que simples rimas tradicionais:

“dia-tarde

dia-parte

dia-marte” (p. 38)

P. J. Ribeiro constrói sua terceira fase com poemas-processo sob o título geral de “A miséria do poema” (1968/76). Miséria que vem da realidade e se impregna ao poema como um esparadrapo a lembrar o que se vê a toda hora. Como no poema de conceito de W. Dias Pino: "Quem olha é responsável pelo que vê". E o poeta é o dono do olhar mais agudo e da consciência mais vigilante, como também das ferramentas mais sutis.   Ele aperfeiçoa no dia a dia a sua intuição, exigindo de si o melhor e mais aparelhado material de luta. Não se contenta, hoje, apenas com palavras para firmar um trabalho. O signo verbal é insuficiente, então ele recorre a outros: o seu esforço cria novos campos de pesquisa, onde o visual às vezes prepondera, mas o seu arsenal não tem limites. “Miséria do Poema” se ajusta ao visual com títulos que conduzem o leitor a pistas para um aproveitamento maior dos trabalhos: “Altar-ego”, “Pílula: antes e depois”, “Miséria”, “Abecedário”, “Cilada”, “A questão das S/A”, “Poluição”, “Água Mole em Pedra” etc.

P. J. Ribeiro, com suas “Abstrações de um Tigre” mostrou como se desenvolveram seus trabalhos, e armou ao mesmo tempo uma panorâmica quase didática da busca constante que faz da poesia essa coisa estranha e diferente para todos. Principalmente para o poeta.

 

(Jornal do Brasil – caderno Livro 20-03-1977)




12/09/2024

KAFKA NO CENTENÁRIO DE SUA MORTE (1883-1924)

SONHOS (?) DE KAFKA 

 Joaquim Branco 

 “Envolve a criança nas dobras do teu manto, sonho sublime.” 




 Esse é o último fragmento do livro "Sonhos", de Franz Kafka, traduzido por Ricardo F. Henrique (Editora Iluminuras). 
 Poucas palavras, verdadeiros “touchestones” onde o leitor pode se fartar de beleza e, ao mesmo tempo, se perder em suas variadas formas significativas. 
Para conhecedores da obra deste grande escritor tcheco, que viveu na confluência do século XIX com o XX e assombrou o seu tempo (e por que não dizer o nosso?) com sua prodigiosa literatura, fica um pouco difícil pensar num título desses. 
A obra de Kafka, considerada um autêntico pesadelo da e na modernidade, tornou-se a emblemática tradução de nossas perplexidades ante o mundo que se nos apresentava como indecifrável e absurdo pelas guerras e outras aberrações do ser humano. 
Kafka, um jovem judeu intimidado pela arrogância paterna, pressionado no gueto de Praga, enredado pela burocracia de um trabalho mecânico demais para sua vocação de escritor, escreveu um relato que até hoje desafia o pensamento crítico e remete sua reflexão para o futuro. 
"O processo", "O castelo", "A metamorfose", "América" são livros cuja linguagem é até acessível ao público, mas o pensamento que ela conduz, a tortuosidade do dilema que propõe, a densa névoa com que o autor reveste as palavras sempre dificultam os caminhos do leitor. 
Mas nada disso embaça a beleza do seu texto erguido em cima de uma simplicidade ao mesmo tempo poética e enigmática. 
Os fragmentos desta coletânea denominada Sonhos foram recolhidos em cartas a suas namoradas Felice e Milena e ao amigo Max Brod e ainda em páginas soltas de seu diário. 
 E se não constituem propriamente sonhos de uma pessoa comum são viagens numa nave encantada que só alguns poucos como Kafka podem (e sabem) pilotar.



12/03/2024

SOBRE O LIVRO "UMA VERDE HISTÓRIA"





NINGUÉM ME CONTOU... EU VI!

 

Mauro Sérgio Fernandes

 

A cena aconteceu quase cem anos, muito antes – é claro – de eu ter nascido. Mas eu vi, juro que vi. Foi ali, num terreno perto do Grupo Escolar Coronel Vieira, nas  imediações onde hoje se situam a Igreja Metodista, a CIMA [hoje, Supermercado Morais] e o Bar do Goiaba [hoje, Restaurante Caruso].         Talvez até mais pra lá, do outro lado, na altura do Centro Espírita Paz, Luz e Amor. Dois garotos jogavam bola, em “dolce far niente”, enquanto outros rodavam pião, aprumavam papagaios, brincavam de pique e as meninas arrumavam bonecas em casinhas de brinquedo. Francisquim tinha nove anos e Rosário, oito. Bons amigos desde os primeiros anos, eles cultivaram a amizade na juventude, subindo juntos o morro da Granjaria para frequentar o Ginásio Municipal de Cataguases.

Mas se isso aconteceu em 1918, e eu nasci décadas depois, como é que eu  posso jurar ter visto tal cena? Que mistério  é esse? Que magia é essa?  direis ouvir estrelas... Certo perdeste o senso.” Pois eu lhes reafirmo: é mistério sim, é magia também. Mistério e magia somente possíveis no inebriante cenário da Arte ou, mais precisamente, na Literatura. Mais precisamente ainda no livro “Uma Verde História”, escrito por Joaquim Branco e ilustrado por Fernando Abritta.

Não se trata de mais um livro de Joaquim  Branco, mas um livro dotado de tanta magia, que, apesar de ter como alvo o público  infantil, ele consegue nos alcançar a todos,  ve- nerandos coroas, fazendo-nos crianças com “olhos de ver histórias”. Assim eu me  senti. Porque, afinal, quem de nós,  cataguasenses, não leu, releu e pesquisou  tanto essa história da qual tanto nos  orgulhamos? Dessa vez, no entanto, foi         diferente: ninguém me contou essa      história... eu vi essa história na sua essência mais profunda.

Vi Francisco e o Fusco jogando bola, indo pro Ginásio, discutindo no Grêmio Literário Machado de Assis. Vi Ascanio  chutar chapínhas e gravetos. Vi Guilhermino ruborizando alunas da Escola Normal Nossa Senhora do Carmo, recitando “Menina batuta/ dos seios de fruta/ novinha que cai...” Vi Oswaldo Abritta versejando sobre a amada Estação e o “footing” na Praça Rui  Barbosa. Vi Camilo Soares louvando a beleza das ruas cataguasenses e dando a notícia da existência, em São Paulo, da grande revolução nas artes com a Semana da Arte Moderna de 1922. Eu vi, gente, juro que vi o Fusco comentando essa notícia assim : “lsso tem cheiro de coisa nova. Taí,           gostei.”

Eu vi, sim, o Doutor Toniquinho, o  Enrique de Resende e o Christóphoro Fonte- Boa reunidos com o grupo inteiro        da “Verde” no Bar do Fonseca, situado na Rua do Comércio [hoje, Calçadão]. E vi muito mais: vi o grupo redigindo, a muitas mãos, o Manifesto e cada um colaborando com poemas e artigos para a Revista. Aquela Revista que bagunçou o coreto dos conservadores e projetou uma cidade do interior das Minas Gerais na vanguarda do movimento modernista brasileiro.

Mais do que simplesmente ler o texto e curtir as ilustrações, a gente viaja no tempo. E eu viajei com tamanha e tão doce infantilidade, que parecia estar tomando conhecimento da história da Verde pela primeira vez. Assim como quem se deslumbra diante do passo a passo de uma historinha, eu vi o que nunca havia visto antes. Ou seja: não apenas a descrição factual e sempre recorrente, mas a aura de um passado mítico, como se tudo fizesse parte de um memorável "faz-de-conta". Cada página do livro de Joaquim Branco é uma janela de onde se descortina a visão de um tempo heróico. Cada palavra, cada frase joaquiniana é uma revelação. Cada traço, cada rabisco abrittiano é uma tradução onírica do que "aqui aconteceu". Texto e imagem são a simbiose perfeita, que resulta em efeito sinestésico com a concretude da visão, além do ler e do olhar. As novas gerações gritavam ávidas por algo que não lhes permitisse desconhecer o sonho revolucionário dos meninos da Verde. O que o Joaquim e o Abritta fizeram foi mostrar à garotada de hoje que eles são "rapazes muito capazes/ de ir ver de Ford verde/ os ases de Cataguases". Resumindo: "Uma Verde História" veio para ficar.

No final do livro, existe a biografia com o retrato dos nove integrantes da revista e duas sugestões de planos de aula para orientação dos professores junto aos alunos do ensino fundamental e médio. E como se isso não bastasse, o livro encaixa na contracapa um livreto com resumo da obra principal, impresso em preto e branco, para o aluno colorir, livremente, de acordo com sua sensibilidade. Vamos saborear a obra de dois grandes artistas, nossos conterrâneos. Somente assim vocês poderão juntar-se a mim, nesse privilégio de poderem também afirmar terem visto, com seus próprios olhos, o que aconteceu há quase cem anos. De minha parte, fica aqui o convite: vamos saborear a obra desses dois grandes artistas, nossos conterrâneos. Somente assim, vocês vão se juntar a mim, afirmando terem visto, com seus próprios olhos, o que aconteceu há quase cem anos.

 

(in jornal “Cataguases”, 11.11.2011, p. 2.)

 

 


 

 

JOAQUIM BRANCO: UM AUTOR COM O SELO DA POESIA

José Luís Jobim



Creio que Joaquim Branco não necessita de apresentação para Cataguases, cidade que sabe muito bem a imensa energia e criatividade que há por trás deste poeta, pesquisador e professor, ligado à vida cultural da cidade há meio século. Também não necessita de apresentação no Rio de Janeiro e nos outros lugares do Brasil onde ele ou sua obra circularam e circulam. Assim sendo, vou me concentrar, nestas breves linhas, a falar um pouco do livro que ele agora publica, porque, meu caro leitor, quando se lê um livro, nem sempre se conhece a história por trás de sua feitura.

Este livro começou de fato quando Joaquim Branco, poeta já consagrado, após a aposentadoria, passou a dedicar-se mais intensamente ao magistério universitário, na sua Cataguases – que ele carinhosamente chama de "província", e que guarda com ele uma grande sinergia, pois tem uma tradição literária de conexão com o agora, com o nacional, com o transnacional, e um potencial de catalisar personalidades artísticas criativas que sempre chamou a atenção dos estudiosos da literatura e da cultura, e a colocou numa posição nada provinciana. De fato, se é uma província com o selo da poesia, como diz o título, não é só por sua relação com a chamada "Arte Postal", mas principalmente porque, seguindo a etimologia da palavra selo, Cataguases tem a marca ou o sinal da poesia em sua história cultural. E parte significante disto se deve à geração de Joaquim - e muito especialmente a ele.

Falemos então novamente de Joaquim Branco e do seu livro. Um dia, este poeta-professor, já sessentão, decidiu fazer seu doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro: fez o exame de seleção, passou com brilhantismo e começou a frequentar seus cursos em 2003. Tive então o privilégio de ser escolhido como seu orientador de tese, papel que cumpri mais na forma de diálogo do que na de orientação propriamente dita. Na época, ele pensava em trabalhar algum dos temas literários mais presentes no cardápio dos estudos de pós-graduação, mas, a partir deste nosso diálogo, chegamos à conclusão de que o trabalho mais relevante a ser feito, e que provavelmente apenas ele poderia fazer – a partir de sua perspectiva histórica e pessoal –, seria exatamente enfocar os movimentos artísticos em que ele se inseriu, durante toda uma vida dedicada a criar e a refletir sobre a criação. Ao longo das páginas seguintes, portanto, o leitor verá Joaquim contando sua estória, transformando em narrativa um passado em que ele foi personagem, descrevendo e ao mesmo tempo refletindo sobre ações e eventos, dando uma certa ordem e sentido à sua própria perspectiva sobre o que vivenciou, estabelecendo um padrão de organização na própria configuração de seu tempo, e dos movimentos que testemunhou e de que participou, e ajudando a criar quadros de referência para a compreensão do contexto e dos textos produzidos em sua época. Quem o conhece sabe que ele não fez (nem fará) isto em um estilo caudaloso, pois nada mais distante de Joaquim do que prestar-se ao chavão do literato verboso e cheio de pompa que gerou personagens caricatos na obra de Jorge Amado ou Dias Gomes.

De fato, uma das minhas mais árduas tarefas no diálogo com Joaquim foi fazê-lo abandonar parcialmente seu modo seco e enxuto de trabalhar a palavra, para desenvolver mais a análise tanto do que ele efetivamente produziu ao longo de sua longa carreira quanto das circunstâncias e teorias que presidiram esta produção. Assim, Joaquim nos levará a recuperar sua vivência de geração, de interior mineiro dos anos 60 e de homem que morou e visitou os grandes centros, construindo sua literatura e sua vida em jornais, livros, cartões e impressos, mas sempre pensando no contexto social em que ele e seus textos se inseriram. Se os que o conhecem sabem que, de fato, Joaquim tem muito mais a dizer do que disse neste volume, o próprio lançamento do livro servirá, entre outras coisas, para que estes amigos (incluso eu) aproveitem para cobrar dele que escreva mais e que seja menos egoísta com suas memórias – ou seja, que deixe de guardá-las só para si e as socialize mais. Claro, sabemos que o modo sintético de ser de Joaquim vai oferecer resistência, porém vencê-la é importante. Eu mesmo tive às vezes uma tarefa difícil, pois houve ocasiões em que o nosso diálogo funcionava como uma cobrança minha de que ele explicitasse o que estava implícito em seu argumento, e ele dizia mais ou menos o seguinte: "Mas eu preciso escrever isto mesmo? É tão óbvio!". Eu asseverava que estava óbvio para ele, porque ele possuía a informação, mas não necessariamente para o leitor virtual, que poderia não possuí-la, e ele então concedia em explicitar a "obviedade". Creio que muitos leitores do presente (e muito mais do futuro!) nos agradecerão por isto. De todo modo, o resultado está agora disponível neste volume e com certeza este é um trabalho que já nasceu como referência obrigatória de todos os que, no campo dos estudos literários, se dedicarem a estudar a geração e a obra de Joaquim Branco. Bom proveito, caro leitor!

30-04-2013

José Luís Jobim é Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.