Em 1979, quando li o livro de contos “Dona Flor”, de Francisco Inácio Peixoto, pude perceber que em um deles – o “João Tertuliano” – havia um fragmento muito semelhante ao poema do mesmo autor denominado “Pedreira”. Fui conferir e ... bingo!
Descobertas como essa acontecem com o estudioso de literatura: ele encontra um autor repetindo um tema, ou melhor, buscando um ângulo diferente ou mais completo no texto seguinte, anos depois.
Foi o que ocorreu com o poema “Pedreira” de 1927 e o conto “João Tertuliano” de 1960, portanto trinta e três anos depois, e, observe-se, em dois gêneros diferentes – poesia e ficção.
No primeiro, como acontece em poemas, a passada é mais rápida, quase um flash; o poeta peneira o acontecimento e grafa apenas a sensação, a impressão rápida. Já no segundo, a prosa busca o detalhe, a descrição mais completa e aprofunda no tema.
É o que o leitor poderá observar já numa primeira leitura das duas peças literárias, ambas de uma arquitetura bem construída e com muita qualidade por Francisco Inácio:
PEDREIRA (poema publicado na Revista Verde nº 4, dez./1927, p. 11)
Dependurados no espaço
eles ficam ali o dia inteiro
arrancando faíscas
furando buracos na pedreira enorme
que reflete como um espelho
as suas sombras primitivas.
À tarde ouve-se um estrondo
e o eco repete a gargalhada das pedras
que vieram rolando da montanha.
Os homens de pele tostada
descem então dos seus esconderijos
e caminham pra suas casas
vagarosamente
decepcionados
segurando com as mãos cheias de calos
as ferramentas com que procuram
há uma porção de anos
o segredo
que lhes dê uma nova revelação de vida.
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JOÃO TERTULIANO (fragmento de conto em “Dona Flor”)
(...) João Tertuliano trabalhava na pedreira. Servicinho infame ficar ali o dia inteiro, dependurado em andaimes, furando buracos sem fim, com a cara escaldando do bafo quente da pedra, o sol tinindo nas costas nuas. Às vezes a vista se perturbava com as cintilações de mica. Terto, porém, não se queixava. Só fazia limpar o suor que escorria e continuava o trabalho, comentando com os companheiros:
— Está daquele jeito, ô fera!
Às cinco horas da tarde, prontos os buracos para a dinamite, ligavam o estopim, preparavam a fuga rápida e lascavam fogo. Dos seus esconderijos, ficavam esperando. Era coisa de todos os dias, mas que dava sensações esquisitas. O barulho das pedras rolando, chocando-se no espaço, parecia que os levava também pela pirambeira abaixo. Meio minuto depois ainda tinha pedra miúda chovendo.
Ah, tiraço! gritavam eles, deixando suas tocas.
Escondiam as ferramentas no mato mesmo e iam descendo para casa.
Terto trabalhava na pedreira há muitos anos. A bem dizer, não conhecera outro serviço, mas ultimamente estava criando medo daquilo. Tinha dias em que chegava a ter vertigens, mas não contava nada a ninguém. Procurava se dominar e, ao mesmo tempo que ia cortando a pedra com a broca, pregava os olhos na capoeira que escurecia o alto do morro ou, então, fechava-os para não ver o precipício. Na hora de botar fogo no estopim e fugir é que chegava a tortura maior. (...) (p.55-56)
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