11/22/2015

POESIA PELO RETROVISOR


Recebo muitos livros, especialmente de poemas. Não consigo, no entanto, registrar todos, primeiro porque não tenho nem obrigação, nem coluna fixa de crítico e segundo porque o que me levanta é a vontade de dizer algo quando ela me incita a isso.

Assim procedo com o pequeno volume de Marcelo Mourão. Um jovem poeta que se autoedita – como quase todos – num país de poucas oportunidades nessa área.

"O diário do camaleão" tem a marca do poeta que já está pronto. De modo geral, todas as suas peças são regularmente de bom nível. Ou seja, dão ao autor a categoria de um trabalho genuinamente bem feito. Dito isso, vou às observações.

A primeira anotação é que Marcelo varia o diapasão ao mesmo tempo que varia acertos e quedas. Acerta quando tem paciência e vai elaborando em volta como neste "Ínfimo circular" (p. 35), ao partir da "cona", para ir ao "canto", ao"colo", "à casa" e encerrar com "à cova", fugindo do tradicional "fecho-de-ouro".

quente é a cona
onde vidas se juntam
e nova vida vem à tona

quente é o canto
]abrigo casca útero
carne que se faz manto

quente é o colo
no qual deito, choro
e durmo em acalantos

quente é a casa
onde caibo e cabe
toda a minha emoção

quente é a cova
que lembra fim
mas é continuação
(p. 35)

Ou neste "Presença" em que recria a 'parceria' feminina com leveza e trabalho de artesanato nos versos, terminando irretocavalmente ao puxar um intertexto: "foi então que aprendi; vão-se as folhas, fica a raiz" (p. 30)

Logo a seguir, em "Opção" e "Sólido e gasoso", 2 micropoemas, a sintaxe econômica alivia o possível peso do discurso poético que poderia advir das temáticas respectivas:

OPÇÃO
acolho
escolhas

despejo
despojos

sou poesia
até os ossos

SÓLIDO E GASOSO
viver é deus
morrer é homem
a arte fica
o tempo some
(p. 31)

Nos poucos poemas de linha social como em "Noturno", o poeta mantém a estrutura e a dicção certeira: "carros aceleram/ assaltos no sinal/ um homem come lixo/ feito bicho, animal/ arrasta a cruz de ser/ resto do resto social. (p. 43)

E em "Cada um em seu quadrado", depois de trabalhar corretamente, encerra bem seu tema: "a elite toca o país/ como toca seus negócios./ ao povo, resta embriagar-se/ com os mesmos velhos ópios." (p. 56)

Resta um lembrete sobre o que chamei de "quedas" no 4º parágrafo. O poeta deve se despreocupar com explicações para o leitor. Deixe que ele se vire como puder. O poema é uma síntese e só a ele o poeta deve ser fiel.

Lembrando a linha qualitativa do autor, fico com este "Fé demais" (que traz um cacófato proposital no título) e estampa a ironia na lapela:

antes
o pastor livrava do lobo
as suas ovelhas.

agora
é o próprio lobo
quem as pastoreia
(p. 51)

Ou com este "Implosão" em que o poético pede ajuda ao propositadamente prosaico para redimensionar a emoção:

hoje só olho em frente
e esqueço o retrovisor.
(p. 33)



Nenhum comentário: