10/29/2016

SUBMERGINDO EM ESTRANHAS ÁGUAS





Quando P. J. Ribeiro, de repente, resolveu botar pra fora todo um arsenal de textos guardado há cerca de 20 anos, ninguém esperava que houvesse tanta coisa boa. Isso o surpreendeu também.

Leitores e críticos, não sabendo que aquela avalanche de bons textos vinha de muitos anos atrás, estão recebendo os livros como produções atuais. Tanto melhor.
Assim, o efeito torna-se ainda mais forte, pois, posto em confronto com muito do que se publica hoje, sua miniprosapoesia cresce em qualidade e novidade.

Este é o 5º volume tirado de um baú que parece inesgotável. A ideia do título inicial de “Água sanitária” passou pela variação de “Águia solitária”, para pousar definitivamente no cruzamento trabalhado: "Água solitária". No caso, o insólito adjetivo ("solitária") aplicado a "água", retira-a da categoria que o inglês chama de "uncountable", levando-a a formar um estranho sintagma, que ajuda a produzir o efeito pretendido pelo autor.

Um pequeno livro composto de minitextos, que parecem a princípio seriados e individualizados em cada página, no entanto, se encadeiam para formar um texto único.
São microfrações de textos tirados de outros textos um pouco maiores feitos ao sabor (ou ao dissabor) da vida, e que certamente, embora em pequenas doses, comprovam e confirmam a tese do quanto menor melhor.
O resto, o leitor há de tirar da sua própria vivência/leitura.
(setembro de 2002)

FRAGMENTOS DE "ÁGUA SOLITÁRIA":
Se o caminho é esse, se ter
de viver exige tanto,
pedir a morte não é muito.
O preço da vida tá um absurdo:
pela hora da morte!

Não posso brigar comigo
embora tenha vontade.
Por dentro quem me garante
qu’ eu não seja a outra metade?

O que me espera depois da morte?
Deus? As almas?
Algum parente?

Como posso saber de mim
se não me acho
um minuto sequer
por perto?

Entretanto tudo temo
e fico tremendo
toda vez que o dia amanhece
e o sol vem
e a luz me bate no rosto

No espelho
viro-me pelo avesso.

A vida tá parando, já sei.
Sei também porque nada mais incomoda
àquele que sempre se passa por mim.

Vou correr atrás desse dia,
lento e indestrutível
bocejo.

Porém não sei como
nem pra onde ir
pois nada nem ninguém
me espera.

Quer saber?
O preço da minha liberdade
tá ficando caro..

Seus lábios me despertam
e me chamam pra vida;
aí eu a abraço e juntos
vamos caminhando por essas ruas
dentro de nossas cabeças.

Assim vou deixando meu coração
seguir sua rota, minha estrela,
pois desse jeito seremos todos
iluminados.

Se a morte chegar de repente
não me surpreendo.
É a vida.

(2002)
(foto Natália Tinoco)

Um comentário:

Ricardo Alfaya disse...

De fato, pensar a água como um ser solitário e individualizado foi um achado. Tenho esse livro do Pedro, acho até que mais de um exemplar. Se depois eu confirmar isso, anunciarei o extra na minha livraria.