3/12/2015
NO ESPELHO DO TEXTO
Depois de levar ao público as qualidades do professor e ensaísta Delson Gonçalves Ferreira (1928-2014), me surpreendo agora com o poeta que não conhecia.
É que recebi na semana passada o livro de poemas "Tempo", enviado por seu irmão Dalton, que organizou e editou a obra, que tem 243 páginas e capa de muito bom gosto.
Lembrei-me na hora de que, em 1967, Delson nos guiou com grande propriedade em sua pesquisa "Ascânio Lopes - vida e poesia". Ali, nós cataguasenses, tomamos contato efetivo com a obra do grande autor da "Verde" e pudemos conhecer e perceber como Ascânio, na faixa dos 20 anos, produziu tão significativa poesia.
Tempos mais tarde, Delson esteve em minha casa e leu para mim um poema que eu havia escrito, cujo tema eram os vários pontos turísticos de Cataguases. Fiquei impressionado com o tom denso e apropriado de sua leitura, onde cada verso era trabalhado por sua sensibilidade mostrada na voz de quem entendia do assunto.
Depois, nunca mais estive com ele. Soube de sua doença grave e prolongada e de sua morte no ano passado, fato sobre o qual já escrevi.
Volto ao livro. "Tempo" está dividido em 2 partes: "Sonetos" e "Poesias". Em "Sonetos", como o nome indica, estão as peças mais formais, rimadas e ritmadas na feição dos 14 versos, na maioria decassílabos. Abre com 3 quartetos dedicados a "Minha mãe". O tom é de singeleza e carinho; o arremate deixa escapar uma pequena brincadeira drummondiana que valoriza a peça:
Quando rezo sozinho a oração
a bonita oração ave-maria
eu cometo um pecado todo dia
um pecado de doce distração.
Quando chego no meio quando digo
o "bendita entre todas as mulheres",
eu repito baixinho aqui comigo:
"minha Mãe a bendita entre as mulheres".
E me esqueço da doce invocação
da bonita oração ave-maria...
Mas a Virgem por certo todo dia
me perdoa sorrindo a distração. (p. 9)
Nesta parte, o poeta se mostra um pouco preso à armação da rima e ao metro só algumas vezes variado. Pode-se identificar em alguns, claramente o aproveitamento do intertexto com Camões, Gonzaga, Guimarães Rosa, Homero, Shakespeare e até Machado de Assis. Pela falta de título na maioria dos poemas, só podemos identificá-los pelas páginas. Transcrevo um sobre o amor em que alterna versos de medidas diferentes e com eficiente economia de palavras:
O amor
espinho e dor
somente
se sente
em vertical
além do bem, do mal.
Pobre amor sozinho
tão mesquinho
se rastejando
aqui e quando:
amor superficial
que só existe
raso e triste
na horizontal. (p. 35)
A infância, o amor, vida/morte e religiosidade são os temas preferidos pelo poeta que não se refugia da dificuldade por caminhos tão caminhados como esses – enfrenta-os bem como em "Toca um sino...", cuja abertura é um verdadeiro achado:
Toca um sino na distância
longamente
me chamando para a infância.
(...) (p. 63)
Ou em definições certeiras como estas:
vida é sempre andar
morte é que é parar... (p. 65)
Imagens enriquecem figuras comparativas com final de humor:
A lua
varre a rua
com sua vassoura
de luar.
Bem devagar.
Numa teia uma aranha
estranha
a lua cheia.
E um poeta vagabundo
menor como eu
mesmo andando na rua
vive longe deste mundo
lá no mundo da lua. (p. 195)
Num crescendo, os poemas vão se tornando ainda mais qualitativos à medida que se avança na leitura, até se chegar ao metalinguismo de:
LER
A palavra escrita
inscrita
na pedra na madeira no bronze
no papel...
se reparte
por toda a parte
e se imprime na alma.
As palavras galopam
em tropel
diante dos olhos
cavalos em disparada.
Colher e escolher
entre elas
estas e aquelas
para a comunicação:
as palavras recriam o mundo.
Palavra é semente
que não morre
em vão.
Ler é ver-se
no espelho do texto.
Ler é ler-se. (p.188)
(12-03-2015)
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