9/18/2008

LECY DELFIM VIEIRA (1942-2008)



“Fundarei o céu e a terra
só para ter aonde ir.”


(foto Lecy Delfim Vieira, 1967)


Espanto e susto. Foi o que me acometeu. Também fiquei muito triste. Alguém me dissera: – Lecy morreu. Dito assim, seco, funcionou como um baque.
Não importa quando, como, onde. Parecia que isso jamais iria acontecer. Sua presença, seus livros voltaram-me à mente. Em suas invenções de paródias ou ensaios de meninas, não era prevista a orfandade do rio e das meninas ao mesmo tempo.
Imagino sua vida ao escrever ainda muito jovem o romance Paródias de um gigante líquido. Um título e tanto. Na época, peguei os manuscritos, li-os numa sentada. Um texto incrível. Naqueles idos de 1961, já senti ali a literatura pulsando célere, madura, imagens bem construídas, novas, o pensamento de uma autora no limite de sua pouca leitura e de sua muita densidade. Como me assustei.
Nem tive tempo de olhar pro lado. Apresentou-me, logo depois, os originais de Ensaios-Menina, não sem muita insistência de minha parte. Poemas de reflexão. Novo impacto. Ela não estava ali para brincar. As meninas, numeradas de 1 ao infinito, não terminariam nunca, e a narradora se dirigia a elas, uma a uma, como se fossem filhas ou espelhos de si mesma ou ambas as coisas. O diálogo textual com as meninas funcionava como num ringue de alter-egos. Daria outro excelente livro.
Tentei incorporá-la ao nosso grupo de rapazes que, na época, fazia o jornalzinho O Muro; publiquei alguns de seus textos, mas ela era impermeável à equipe. Tinha seu próprio mundo e mostrava-se arredia ao assédio.
Mesmo assim, busquei editores, críticos no Rio, em Belo Horizonte e São Paulo, pois Lecy era a única do grupo que tinha livros prontos e eu sabia o que estava diante de mim. Nada. A sorte não estava a seu favor.
O máximo que consegui foi o interesse do crítico Assis Brasil e depois de Walmir Ayala, que selecionou vários de seus poemas para a antologia Poetas novos do Brasil, em 1967. Ali foram editadas, pela primeira vez em livro, as ‘meninas’, com apresentação de Francisco Inácio Peixoto, que dizia: ‘Herdeira do nada, senão dos caminhos de Cataguases, e de sua infância, explode em diálogos que, na verdade, são monólogo de obsedante desamparo: ‘Será que não há no mundo/ quem queira comigo ir,/ mesmo que não olhe meus olhos/ inda que vá por partir?’. Falamos ‘explode’ e não há de fato, outro verbo para exprimir o jeito que Lecy tem de dizer as coisas.”
Volto a Lecy. Procuro um fragmento de Paródias... , ele dá o tom do belo dis’curso do rio:
“Nasci nas frontes de Minas Gerais como um mineiro qualquer. Depois de ser nascido fui amado e batizado como um rio qualquer. Minha infância foi sem tréguas. Sempre corri demais. Talvez por isso começaram as ofertas que não vinha por amar-me sim por acalmar-me. E mais vingança eu sonhava quando uma rosa sem história sumia na minha cara perdida. Sempre fui assim muito quieto e muito rápido, muito forte e bem amado. Era assim o meu trecho, sempre cresci sem vontade e cheio de mágoas. Como lágrimas sentidas de uma guerra interminável de um texto prevendo misérias.
Fora isso, sempre fui muito sóbrio, contra o Amazonas.”
Outros fragmentos de sua obra, e não é difícil encontrá-los da melhor qualidade:
“Precisarei de alimento, água, bússola, companheira./ – será que não há no mundo quem queira comigo ir? –/ inda que não olhe meus olhos/ inda que vá por partir./ – Fundarei o céu e a terra só pra ter aonde ir.” (Menina nº 70)
“O que devemos Menina é fazer a vida/ não assisti-la.” (Menina nº 62)
“E o grande aguaceiro, e as grandes orgias, e o aguaceiro e as orgias. Meu sonhar terrível me desperta de tantas mágoas que nem sei se verei o fim do mundo. [...] Todos os que caíram nas minhas águas aumentaram meus pesadelos. Então que lhes devo?” (Paródias do gigante líquido, p. 5)
“Além de mim o que mais quererão os deuses de mim?” (Menina nº 54)
“O mundo?/ O mundo é aquilo que era redondo e que mudou de forma como eu./ Será que o mundo me imita?” (Menina nº 31)
“Do jeito que vais Menina/ em pouco o mundo estará velho demais./ – e são 365 dias às vezes 66 além dos nossos –/ tantos/ que tu me perguntas/ como/ a humanidade pode viver com tão poucos dias/ incrível não Menina?” (Menina nº 24)
“...até que o mar que nunca fica louco de sede/ – que só a sede enlouquece –/ até que o mar normal, arrebente este litoral/ que nunca sei se termina/ cá/ ou acolá/ da mangueira.” (Menina nº 22)
“Eu me importaria que te suicidasses/ que então eu não teria armas contra o mundo./ Tu és o meu projétil.” (Menina nº 20)
“Serei eu provável pedreira?/ Eu te darei todas as pedras./ Que são as estrelas que não buracos no céu/ feitos por pedradas?/ Uma pedra bem atirada revela tudo ao homem Menina./ Um pássaro apedrejado – por Deus não chores –/ o pássaro é um embuste./ Um homem apedrejado – por Deus não te escondas atrás de mim –/ já te ensinei a enfrentar os dragões Menina./ Além do mais/ tu tens todas as pedras./ No entanto, recorda-te,/ que o que importa é o alvo/ não é a pedra.” (Menina nº 18)
“A felicidade é como o segundo andar de um clube/ três garrafas/ dois copos/ uma mesa./ A paisagem atrás da vidraça/ eu/ e catorze cadeiras./ Mas não é felicidade que eu busquei/ ninguém pode dizer isto./ Eu não quero buscar mais nada/ se tu nunca estás em nada/ nem em mim/ tu tão independente./ Não quero felicidade/ de cadeiras/ de copos/ de mesa./ Menina/ eu te quero apenas.” (Menina nº 11)
“O que vale na vida é comer ou não comer./ Mas jamais deixes de devorar os extremos/ pois para além deles/ não há mais nada para se comer./ E é no ato de se devorar os extremos que está a fórmula iminente da vida.” (Menina nº 6)
No dia 8 de agosto morreu a cataguasense escritora Lecy Delfim Vieira, ela que nascera no dia 12 de outubro de 1942. Um talento tão grande que acabou prejudicando a sua edição em livro solo.
Além da antologia de Walmir Ayala, participou apenas da coletânea Marginais do Pomba, organizada por mim, Fernando Cesário e Ronaldo Werneck. Deixou inéditos títulos como Rua sem elevadores, 8.511.965 km2 de omissão, PAN-Pressão atmosférica normal, Mulher setentrional, Ensaios-Menina e Paródias do gigante líquido. Espero editá-los brevemente, e levar ao público palmo a palmo o seu caminho literário.

4 comentários:

Anônimo disse...

Avante, Joaquim!, que este trabalho precisa ser feito! E que bom que está em suas mãos. É gratficante saber que há militantes por essas bandas que andam meio desleixadas! Avante, Joaquim!

A poesia de Lecy (em prosa e verso) é com certeza algo raro. Só com esses fragmentos me sinto bem. Imagino quando tiver um livro dela entre as mãos!

Maria Aparecida disse...

Completamente extasiada, Joaquim! Não a conheci. Ainda bem que vc existe
e abraçou essa causa. Lecy merece,só pelo que li aqui já fiquei louca de vontade de ler sua obra inteira. Vá em frente, é uma questão de justiça fazer sua obra conhecida!

luciano de andrade disse...

manda brasa aí, sô joaquim: faz ela quer nascer pra nós!

Cassiana Lima disse...

Muito, muito interessante! Gostaria de conhecer mais da autora. Obrigada, Joaquim.