NINGUÉM ME CONTOU... EU
VI!
Mauro Sérgio Fernandes
A cena aconteceu
há quase cem anos, muito antes
– é claro – de eu ter nascido. Mas eu vi, juro que vi. Foi ali, num terreno perto do Grupo Escolar Coronel Vieira, nas
imediações
onde hoje se situam a Igreja Metodista,
a CIMA [hoje, Supermercado
Morais] e o Bar do Goiaba [hoje, Restaurante Caruso]. Talvez até mais pra lá, do outro lado, na
altura do Centro Espírita Paz, Luz e Amor. Dois garotos jogavam bola, em “dolce far niente”, enquanto outros rodavam pião, aprumavam papagaios,
brincavam de pique e as meninas arrumavam bonecas em casinhas de brinquedo. Francisquim tinha
nove anos e Rosário, oito. Bons amigos desde os primeiros anos, eles cultivaram a amizade na juventude, subindo
juntos o morro da Granjaria para frequentar o Ginásio
Municipal de Cataguases.
Mas se isso aconteceu em 1918, e eu nasci décadas depois, como
é que eu posso jurar ter visto tal cena? Que mistério é esse? Que magia é essa? direis – “ouvir
estrelas... Certo perdeste o senso.”
Pois eu lhes reafirmo: é mistério sim, é magia também. Mistério e magia somente possíveis no
inebriante cenário da Arte ou, mais precisamente, na Literatura. Mais precisamente
ainda no livro “Uma Verde História”,
escrito por Joaquim Branco e ilustrado por Fernando Abritta.
Não se trata de mais um livro de Joaquim Branco, mas um livro
dotado de tanta magia, que, apesar de ter como alvo o público
infantil, ele consegue nos alcançar a todos, ve- nerandos coroas,
fazendo-nos crianças com “olhos
de ver histórias”. Assim eu me senti. Porque, afinal, quem de nós, cataguasenses, não leu, releu e pesquisou tanto essa história da qual tanto nos
orgulhamos? Dessa vez,
no entanto, foi diferente: ninguém me contou essa história... eu vi essa história
na sua essência mais profunda.
Vi Francisco e o Fusco jogando
bola, indo pro Ginásio, discutindo no Grêmio Literário Machado
de Assis. Vi Ascanio chutar
chapínhas e gravetos. Vi Guilhermino ruborizando alunas da Escola Normal Nossa Senhora do Carmo, recitando “Menina batuta/ dos seios de fruta/ novinha que cai...” Vi Oswaldo Abritta versejando sobre a amada
Estação e o “footing” na Praça Rui Barbosa. Vi Camilo Soares louvando a beleza
das ruas cataguasenses e dando a notícia da existência, em São Paulo, da grande
revolução nas artes com a Semana
da Arte Moderna de 1922. Eu vi, gente, juro que
vi o Fusco comentando essa notícia assim : “lsso tem cheiro de coisa nova. Taí, gostei.”
Eu vi, sim, o Doutor Toniquinho, o Enrique de Resende e o Christóphoro Fonte- Boa reunidos com o grupo inteiro da “Verde” no Bar do Fonseca, situado
na Rua do Comércio [hoje, Calçadão]. E
vi muito mais: vi o grupo
redigindo, a muitas mãos, o Manifesto
e cada um colaborando com poemas e artigos para a Revista. Aquela
Revista que bagunçou o coreto dos conservadores e projetou uma cidade do interior das Minas Gerais
na vanguarda do movimento
modernista brasileiro.
Mais do que simplesmente ler o texto e curtir as ilustrações, a gente viaja no tempo. E eu viajei com
tamanha e tão doce infantilidade, que parecia estar tomando conhecimento da história da Verde
pela primeira vez. Assim como quem se deslumbra diante do passo a passo
de uma historinha, eu vi o que nunca havia visto antes. Ou seja:
não apenas a descrição factual e sempre recorrente, mas a aura de um passado
mítico, como se tudo fizesse parte de um memorável "faz-de-conta".
Cada página do livro de Joaquim Branco é uma janela de onde se descortina a
visão de um tempo heróico. Cada palavra, cada frase joaquiniana é uma
revelação. Cada traço, cada rabisco abrittiano é uma tradução onírica do que
"aqui aconteceu". Texto e imagem são a simbiose perfeita, que resulta
em efeito sinestésico com a concretude da visão, além do ler e do olhar. As
novas gerações gritavam ávidas por algo que não lhes permitisse desconhecer o
sonho revolucionário dos meninos da Verde. O que o Joaquim e o Abritta fizeram
foi mostrar à garotada de hoje que eles são "rapazes muito capazes/ de ir
ver de Ford verde/ os ases de Cataguases". Resumindo: "Uma Verde
História" veio para ficar.
No
final do livro, existe a biografia com o retrato dos nove integrantes da
revista e duas sugestões de planos de aula para orientação dos professores
junto aos alunos do ensino fundamental e médio. E como se isso não bastasse, o
livro encaixa na contracapa um livreto com resumo da obra principal, impresso
em preto e branco, para o aluno colorir, livremente, de acordo com sua
sensibilidade. Vamos saborear a obra de dois grandes artistas, nossos
conterrâneos. Somente assim vocês poderão juntar-se a mim, nesse privilégio de
poderem também afirmar terem visto, com seus próprios olhos, o que aconteceu há
quase cem anos. De minha parte, fica aqui o convite: vamos saborear a obra
desses dois grandes artistas, nossos conterrâneos. Somente assim, vocês vão se
juntar a mim, afirmando terem visto, com seus próprios olhos, o que aconteceu
há quase cem anos.
(in
jornal “Cataguases”, 11.11.2011, p. 2.)
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