12/03/2024

SOBRE O LIVRO "UMA VERDE HISTÓRIA"





NINGUÉM ME CONTOU... EU VI!

 

Mauro Sérgio Fernandes

 

A cena aconteceu quase cem anos, muito antes – é claro – de eu ter nascido. Mas eu vi, juro que vi. Foi ali, num terreno perto do Grupo Escolar Coronel Vieira, nas  imediações onde hoje se situam a Igreja Metodista, a CIMA [hoje, Supermercado Morais] e o Bar do Goiaba [hoje, Restaurante Caruso].         Talvez até mais pra lá, do outro lado, na altura do Centro Espírita Paz, Luz e Amor. Dois garotos jogavam bola, em “dolce far niente”, enquanto outros rodavam pião, aprumavam papagaios, brincavam de pique e as meninas arrumavam bonecas em casinhas de brinquedo. Francisquim tinha nove anos e Rosário, oito. Bons amigos desde os primeiros anos, eles cultivaram a amizade na juventude, subindo juntos o morro da Granjaria para frequentar o Ginásio Municipal de Cataguases.

Mas se isso aconteceu em 1918, e eu nasci décadas depois, como é que eu  posso jurar ter visto tal cena? Que mistério  é esse? Que magia é essa?  direis ouvir estrelas... Certo perdeste o senso.” Pois eu lhes reafirmo: é mistério sim, é magia também. Mistério e magia somente possíveis no inebriante cenário da Arte ou, mais precisamente, na Literatura. Mais precisamente ainda no livro “Uma Verde História”, escrito por Joaquim Branco e ilustrado por Fernando Abritta.

Não se trata de mais um livro de Joaquim  Branco, mas um livro dotado de tanta magia, que, apesar de ter como alvo o público  infantil, ele consegue nos alcançar a todos,  ve- nerandos coroas, fazendo-nos crianças com “olhos de ver histórias”. Assim eu me  senti. Porque, afinal, quem de nós,  cataguasenses, não leu, releu e pesquisou  tanto essa história da qual tanto nos  orgulhamos? Dessa vez, no entanto, foi         diferente: ninguém me contou essa      história... eu vi essa história na sua essência mais profunda.

Vi Francisco e o Fusco jogando bola, indo pro Ginásio, discutindo no Grêmio Literário Machado de Assis. Vi Ascanio  chutar chapínhas e gravetos. Vi Guilhermino ruborizando alunas da Escola Normal Nossa Senhora do Carmo, recitando “Menina batuta/ dos seios de fruta/ novinha que cai...” Vi Oswaldo Abritta versejando sobre a amada Estação e o “footing” na Praça Rui  Barbosa. Vi Camilo Soares louvando a beleza das ruas cataguasenses e dando a notícia da existência, em São Paulo, da grande revolução nas artes com a Semana da Arte Moderna de 1922. Eu vi, gente, juro que vi o Fusco comentando essa notícia assim : “lsso tem cheiro de coisa nova. Taí,           gostei.”

Eu vi, sim, o Doutor Toniquinho, o  Enrique de Resende e o Christóphoro Fonte- Boa reunidos com o grupo inteiro        da “Verde” no Bar do Fonseca, situado na Rua do Comércio [hoje, Calçadão]. E vi muito mais: vi o grupo redigindo, a muitas mãos, o Manifesto e cada um colaborando com poemas e artigos para a Revista. Aquela Revista que bagunçou o coreto dos conservadores e projetou uma cidade do interior das Minas Gerais na vanguarda do movimento modernista brasileiro.

Mais do que simplesmente ler o texto e curtir as ilustrações, a gente viaja no tempo. E eu viajei com tamanha e tão doce infantilidade, que parecia estar tomando conhecimento da história da Verde pela primeira vez. Assim como quem se deslumbra diante do passo a passo de uma historinha, eu vi o que nunca havia visto antes. Ou seja: não apenas a descrição factual e sempre recorrente, mas a aura de um passado mítico, como se tudo fizesse parte de um memorável "faz-de-conta". Cada página do livro de Joaquim Branco é uma janela de onde se descortina a visão de um tempo heróico. Cada palavra, cada frase joaquiniana é uma revelação. Cada traço, cada rabisco abrittiano é uma tradução onírica do que "aqui aconteceu". Texto e imagem são a simbiose perfeita, que resulta em efeito sinestésico com a concretude da visão, além do ler e do olhar. As novas gerações gritavam ávidas por algo que não lhes permitisse desconhecer o sonho revolucionário dos meninos da Verde. O que o Joaquim e o Abritta fizeram foi mostrar à garotada de hoje que eles são "rapazes muito capazes/ de ir ver de Ford verde/ os ases de Cataguases". Resumindo: "Uma Verde História" veio para ficar.

No final do livro, existe a biografia com o retrato dos nove integrantes da revista e duas sugestões de planos de aula para orientação dos professores junto aos alunos do ensino fundamental e médio. E como se isso não bastasse, o livro encaixa na contracapa um livreto com resumo da obra principal, impresso em preto e branco, para o aluno colorir, livremente, de acordo com sua sensibilidade. Vamos saborear a obra de dois grandes artistas, nossos conterrâneos. Somente assim vocês poderão juntar-se a mim, nesse privilégio de poderem também afirmar terem visto, com seus próprios olhos, o que aconteceu há quase cem anos. De minha parte, fica aqui o convite: vamos saborear a obra desses dois grandes artistas, nossos conterrâneos. Somente assim, vocês vão se juntar a mim, afirmando terem visto, com seus próprios olhos, o que aconteceu há quase cem anos.

 

(in jornal “Cataguases”, 11.11.2011, p. 2.)

 

 


 

 

JOAQUIM BRANCO: UM AUTOR COM O SELO DA POESIA

José Luís Jobim



Creio que Joaquim Branco não necessita de apresentação para Cataguases, cidade que sabe muito bem a imensa energia e criatividade que há por trás deste poeta, pesquisador e professor, ligado à vida cultural da cidade há meio século. Também não necessita de apresentação no Rio de Janeiro e nos outros lugares do Brasil onde ele ou sua obra circularam e circulam. Assim sendo, vou me concentrar, nestas breves linhas, a falar um pouco do livro que ele agora publica, porque, meu caro leitor, quando se lê um livro, nem sempre se conhece a história por trás de sua feitura.

Este livro começou de fato quando Joaquim Branco, poeta já consagrado, após a aposentadoria, passou a dedicar-se mais intensamente ao magistério universitário, na sua Cataguases – que ele carinhosamente chama de "província", e que guarda com ele uma grande sinergia, pois tem uma tradição literária de conexão com o agora, com o nacional, com o transnacional, e um potencial de catalisar personalidades artísticas criativas que sempre chamou a atenção dos estudiosos da literatura e da cultura, e a colocou numa posição nada provinciana. De fato, se é uma província com o selo da poesia, como diz o título, não é só por sua relação com a chamada "Arte Postal", mas principalmente porque, seguindo a etimologia da palavra selo, Cataguases tem a marca ou o sinal da poesia em sua história cultural. E parte significante disto se deve à geração de Joaquim - e muito especialmente a ele.

Falemos então novamente de Joaquim Branco e do seu livro. Um dia, este poeta-professor, já sessentão, decidiu fazer seu doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro: fez o exame de seleção, passou com brilhantismo e começou a frequentar seus cursos em 2003. Tive então o privilégio de ser escolhido como seu orientador de tese, papel que cumpri mais na forma de diálogo do que na de orientação propriamente dita. Na época, ele pensava em trabalhar algum dos temas literários mais presentes no cardápio dos estudos de pós-graduação, mas, a partir deste nosso diálogo, chegamos à conclusão de que o trabalho mais relevante a ser feito, e que provavelmente apenas ele poderia fazer – a partir de sua perspectiva histórica e pessoal –, seria exatamente enfocar os movimentos artísticos em que ele se inseriu, durante toda uma vida dedicada a criar e a refletir sobre a criação. Ao longo das páginas seguintes, portanto, o leitor verá Joaquim contando sua estória, transformando em narrativa um passado em que ele foi personagem, descrevendo e ao mesmo tempo refletindo sobre ações e eventos, dando uma certa ordem e sentido à sua própria perspectiva sobre o que vivenciou, estabelecendo um padrão de organização na própria configuração de seu tempo, e dos movimentos que testemunhou e de que participou, e ajudando a criar quadros de referência para a compreensão do contexto e dos textos produzidos em sua época. Quem o conhece sabe que ele não fez (nem fará) isto em um estilo caudaloso, pois nada mais distante de Joaquim do que prestar-se ao chavão do literato verboso e cheio de pompa que gerou personagens caricatos na obra de Jorge Amado ou Dias Gomes.

De fato, uma das minhas mais árduas tarefas no diálogo com Joaquim foi fazê-lo abandonar parcialmente seu modo seco e enxuto de trabalhar a palavra, para desenvolver mais a análise tanto do que ele efetivamente produziu ao longo de sua longa carreira quanto das circunstâncias e teorias que presidiram esta produção. Assim, Joaquim nos levará a recuperar sua vivência de geração, de interior mineiro dos anos 60 e de homem que morou e visitou os grandes centros, construindo sua literatura e sua vida em jornais, livros, cartões e impressos, mas sempre pensando no contexto social em que ele e seus textos se inseriram. Se os que o conhecem sabem que, de fato, Joaquim tem muito mais a dizer do que disse neste volume, o próprio lançamento do livro servirá, entre outras coisas, para que estes amigos (incluso eu) aproveitem para cobrar dele que escreva mais e que seja menos egoísta com suas memórias – ou seja, que deixe de guardá-las só para si e as socialize mais. Claro, sabemos que o modo sintético de ser de Joaquim vai oferecer resistência, porém vencê-la é importante. Eu mesmo tive às vezes uma tarefa difícil, pois houve ocasiões em que o nosso diálogo funcionava como uma cobrança minha de que ele explicitasse o que estava implícito em seu argumento, e ele dizia mais ou menos o seguinte: "Mas eu preciso escrever isto mesmo? É tão óbvio!". Eu asseverava que estava óbvio para ele, porque ele possuía a informação, mas não necessariamente para o leitor virtual, que poderia não possuí-la, e ele então concedia em explicitar a "obviedade". Creio que muitos leitores do presente (e muito mais do futuro!) nos agradecerão por isto. De todo modo, o resultado está agora disponível neste volume e com certeza este é um trabalho que já nasceu como referência obrigatória de todos os que, no campo dos estudos literários, se dedicarem a estudar a geração e a obra de Joaquim Branco. Bom proveito, caro leitor!

30-04-2013

José Luís Jobim é Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense.