10/23/2020

SORTILÉGIO

 


 SORTILÉGIO

Joaquim Branco

 

Interlúdio? Magia? Romance? Casos? Histórias?

Por certo é um Romance, no sentido mais verdadeiro e técnico do termo. Há que se pesar inclusive a presença da narrativa em capítulos, do narrador ora em primeira pessoa, ora em terceira, dos personagens e da massa textual bem trabalhada, em muitos pontos até poeticamente, como se poderá ver nos fragmentos que coletei.

Tudo isso enforma o livro ora apresentado: “A perfumista da noite”, de Leila Lúcia Gomes Martins; como ela diz: “são anos, em uma noite” (p. 16) ou em uma leitura.

O romance – e o próprio título antecipa –  é transpassado por fragrâncias tiradas das flores e da vegetação em geral, impregnando o ambiente, as cenas e até os personagens: “Cada um tem sua fragrância, mostra Abgail (a protagonista). Cada um é especial!” (p. 18)

Há fragmentos um pouco mais tocados por um lirismo dosado às vezes mais marcadamente pela narradora: “Quando se conhece o caminho, tem-se os pés eternamente tatuados pela felicidade.” (p. 13) Ou em seguida: “Permita-se abertura para os sonhos; esta é a fórmula. Abrir-se todas as noites, amar-se em todas as manhãs, tocar-se com todo o sol e por ele e com ele se apaixonar, se misturar e ser um só.” (p. 13)

Na preparação do enredo, há toda uma mística com que o leitor pode demorar um pouco a se acostumar, até o fecho inicial que combina com a noção de dia: “Assim a manhã se deu por acabada.” (p. 15)

Daí em diante, surgem um a um os personagens recebidos por Abgail. A primeira é Maria Soledade. Inicialmente o contato é logo na entrada da estranha na perfumaria, e vem por meio de perguntas que a perfumista faz para identificar qual o perfume adequado para cada cliente, pois ela já sabe que precisa encontrar, com o perfume, a cura para cada pessoa que a procura.

No capítulo “No país das maravilhas”, tudo parece sonhado e transferido para as roupas do personagem: “A terceira saia era o céu esmaecendo, e o azul perde-se no caminho. [...] A cada passo um instante e uma eternidade. Como podem-se dar tão bem o instante e a eternidade?” (p. 22)

Reflexões surgem a cada instante, quase sempre através da protagonista: “Sinto mesmo que pessoas que não acreditam em Deus usam do nome d’Ele o tempo todo para negociar.” (p. 36)

Ao final do capítulo 18 – “Culto e oração” – em meio ao litúrgico e o social, o poético absorve a cerimônia do padre para arrematar: “Entre leitura e interpretação, esmiúça-se um coração!” (p. 45)  

Às vezes os dias transcorrem normais, mas de repente as coisas mudam; entra alguém (Justina) pela porta da perfumaria e vem a oportunidade da constatação da protagonista, como a responder a uma pergunta: “Porque ninguém sofre sozinho. Porque jamais estaremos sozinhos. [...] Estava agora sozinha e, talvez assim, muito bem acompanhada.” (p. 55)

Para cada caso – e esse é o movimento das cenas do romance –, Abgail apresenta uma solução que pode estar até na noite bem dormida da personagem: “Seu sonho não acabou, pois eles nunca se acabam, apenas esperam por nós, escondidos nos travesseiros, e, se não o acolhemos pela manhã, eles aguardarão pela manhã do dia seguinte, pois sabem que, mais dia menos dia, precisaremos deles e eles jamais nos faltarão.” (p. 61)

Os clientes-personagens vão se sucedendo a cada capítulo. Quitéria, à procura do filho desaparecido, aceita até fazer o impossível, e, com Abgail, entra num “buraco da parede e dão início à caminhada. O buraco é escuro, mas o caminho é luminoso. O caminho é sinuoso, cheio de curvas, ora para a direita, ora para a esquerda.” (p. 70)

A libertação termina ali mesmo, com a confissão de Quitéria: “Pude sentir que dentro do portal tinham muitos filhos e não só o meu: não retornei apenas pelo meu, mas pelos nossos.” (p. 71) O que permite à narradora fechar o capítulo: “O sol somente não brilhará onde você permitir que a escuridão se instale. Um sol para Quitéria!” (p. 71)

À medida que aparecem os desafios, esses vêm sempre em forma da chegada de mulheres em cada parte da narrativa: “Abgail sugere a Cátia: – Vamos conversar mais e a nossa paz estará estabelecida. – Nossa paz? – Nossa. – Não tenho paz se você não a tem.” (p. 75)

Vai terminando o capítulo com a tranquila Abgail virando-se para Cátia,: “– A doença não vai abandonar você: você é quem vai abandoná-la, mas sem rancor.” (p. 77)

Pelos 43 capítulos do romance, desfilam Georgiana, Quitéria, Maria, Nádia, Leonor, Bibiana, Floroteia e muitas mais, diante das quais a protagonista apresenta soluções mágicas para as dores de cada uma: “E o que é o Mal? As sombras! As dores! As mentiras! As humilhações! As dúvidas! Os braços cruzados e a falta de braços! As portas fechadas! As portas fechadas e a necessidade crucial de entrar. Os lábios cerrados e a guerra que por um sorriso poderia cessar.” (p. 88-89)

A mulher “segue até o rosto e então por algum tempo se energiza para socorrer a mulher que aguarda por ajuda. Seca as mãos e o rosto na fina tolha de linho branco com bordados de crivo da mesma cor. Retoca o batom cor de boca e segue para a batalha de moldura bíblica”. (p. 106)

São marcantes as saídas encontradas na narrativa, como esta que se vale novamente do componente poético em som e ritmo: “Temos um barco, temos remos, o mar está calmo, o vento sopra a favor e o sol é nosso convidado. Só nos resta aprender a navegar.” (p. 109)

O ponto alto do livro é o capítulo 38, que narra o encontro mais esperado ou mesmo inesperado entre a protagonista Abgail e seu marido. Trata-se da renovação para valer de uma relação desgastada e que aí ressurge e torna-se plena. Abgail e Pedro Henrique vivem uma noite de redenção, que a narradora sintetiza nestas palavras: “...e o sol, pretendendo se eternizar nesse instante, não perde a oportunidade. Tatua-lhe no tórax o calor das horas. O sol se emociona em fazer parte dessa história. Então foi escorregando de mansinho e assim dá a luz a outra história, do outro lado do mundo.” (p. 140)

Os capítulos finais são reservados para a morte da narradora, o que repercute fisicamente no livro que agora tem as páginas totalmente brancas como se estivesse pronto para o início de uma nova obra.

Abgail morre aos 93 anos e aplaude a autora Leila Lúcia Gomes Martins, terminando assim o romance metalinguisticamente: “Eu não poderia faltar a este encontro. Porque deste encontro eu fui apenas o elo, mas precisava estar lá. Abigail ainda possui os braços repletos de sementes. Ainda bem que hoje tem sol!” (p. 150) 

 

 


3 comentários:

Antônio Martins disse...

Parabéns Leila! Li o seu livro, realmente muito bom! 👏

Luiz Lopez - Escritor disse...

Parabéns, Leila! Instigante e excelente texto do mestre Joaquim Branco!

Joaquim Branco disse...

Obrigado por suas palavras, Luiz. O livro é realmente muito bom. Abraços.