8/19/2017
CESARINHO: POESIA ESSENCIAL
Cesarinho era um menino franzino, moreno e muito introspectivo.
Tinha, como se podia notar logo, a veia artística. Foi assim que me aproximei dele e o conheci, nas lides culturais, mas ele sempre na sombra, nos cantos, participando timidamente dos grupos de arte cataguasenses.
Mais tarde, "desapareceu", foi para o Rio e só tinha notícias dele por seu irmão Artur, meu colega de banco.
Soube depois, com tristeza, que morrera em dezembro de 2010, aos 62 anos.
Mas não era possível que sua biografia ficasse parada nisso.
Eis que, no ano passado, fui convidado para o lançamento póstumo de um livro de Joffer Cesario Júnior (seu nome completo) intitulado "A ência da essência está na imanência", organizado por sua mulher Heli Cesário.
Compareci e tive a grata surpresa de confirmar o talento que eu apenas havia entrevisto nos anos 60.
Seu livro é dividido em 5 partes: "A pré-história", "Oldies & goldies", "70's", "Metal/fórica" e "Ainda".
Encontrei boas soluções no seu trabalho, que comento e reproduzo de acordo com os fragmentos a seguir.
Na página 17, Cesarinho pega um intertexto com Casimiro de Abreu e vai longe em "Nostalgia": "que saudade eu tenho/ dos tempos de outrora/ em que eu era menino/ sem tempo, sem hora/ de nada fazer (...)"
Em "Domingo", ele recolhe o protesto nas páginas do JB/1º Caderno (Jornal do Brasil) e traça o seu caminho com arte e eficiência no melhor de seus poemas: "a águia ataca/ o mundo estaca/ AVE AMERICANIS!/o sangue escorre/ no chão de sudestásia/ a águia investe/ poderosa, cancerosa/ nos arrozais/ rosais de vietsangue/ (rosa-choque/sangue-guerra/ bangue-bangue)" (p. 23)
Não falta o poema em homenagem a sua terra "Triste princesa ou ai de ti Cataguases" que tenho que reproduzir inteiro pela escolha temática e qualidade dos versos: "Não te conheço mais/ eu que vi teus ases e cartazes/; no mural geral do saber/ um triste silêncio/ os teus montes, pontes, praças/ tudo a envolver/ no rio morto/ a negra pataca/ da morte exalando/ o preço vil/ quem é que manda/ no destino/ de teus filhos/ deste feudo/ o desatino,/ a amarga tristeza; de jamais voltar a ter-te/ pra nós/ princesa. (p. 43)
Na abertura de "Metal/fórica", o poeta chega à seca e exata concreção "the money/ deus/mônio" (p. 53), para, no "II Congresso Internacional do Medo", esgotar todas as suas negativas e negatividades num longo discurso que finaliza simplesmente: "eu tenho medo de tudo". (p. 81)
Encerro o "tour" pela obra de Cesarinho com "Shit!", que inicia quase prosaicamente: "eu /que sou dado/ a falar/ (quando não estou no meu canto calado)/ pelos cotovelos/ me enredo/ no novelo/ de minhas/ ideias..." e termina emblematicamente: "prefiro/ a intuição/ certeira/ que vai direto/ no coração". (p. 87)
Cesarinho e sua esposa Heli
8/10/2017
De Ronaldo Werneck sobre "Refugiados", de Joaquim Branco
O POETA, ESSE REFUGIADO
Ronaldo Werneck
“De frio e fome/ cobertos apenas pela chuva/ eles morrem às dezenas,/ vindos do país do nada/ para o nada caminhando” – escreve Joaquim Branco na abertura de seu poema “Refugiados”, que dá título a esse novo e belo livro do poeta cataguasense. Não foi à toa que Platão expulsou os poetas da República, deixou-os fora do Banquete. Quando conscientes, poetas são perigosos. Poetas apontam o caos do cotidiano. Poetas são refugiados do sistema. Poetas são refugiados até mesmo da literatura.
E refugiados podem um dia insurgir, recusar, rebelar-se contra as injustiças: “Caminham em paralelas/para o infinito ou para a morte/sobre os trilhos que os libertem/da difícil batalha contra a sorte". Exatamente como fazem os poetas da recusa, antenados com o mundo à sua volta. Não só com poemas participantes, de protesto, como com aqueles outros, os poemas visionários, antecipadores, que vão de encontro à arte tradicional. Nada mais são que também refugiados esses poetas que fabricam seus poemas de recusa.
“Braço que acusa o acaso”, escreveu Augusto de Campos em sua elegia para o poeta Mário Faustino, o ´aeromorto´. O mesmo Augusto que nos diz em seu livro “Poesia da Recusa” (Ed. Perspectiva, 2006): “Em defesa de Mallarmé, afirmou Valéry, certa vez, que o trabalho severo, em literatura, se manifesta e se opera por meio de recusas. A melhor poesia que se praticou em nosso tempo passou por esse crivo. Da recusa estética (Mallarmé) à recusa ética (Tzvietáieva), se é que ambas não estão confundidas numa só, essa poesia, baluarte contra o fácil”.
E Augusto se estende em seu rol de recusas: “A maioria das pessoas quer o consolo do entretenimento, arte fácil e descartável para descansar a cabeça, ‘esquecer da vida’, e não para problematizar-se. O que quer, afinal, Mallarmé, com tantos enigmas? Conhecer-se. Romper os limites da linguagem para compreender e exprimir melhor as angústias humanas diante do enigma supremo da vida e da morte. Revitalizar a própria linguagem, dando-lhe um sentido mais puro”.
Exatamente o que quis e quer Joaquim Branco em seus longos anos de ofício literário. Nós nos conhecemos – melhor, nos aproximamos e começamos a trocar ideias e dar início à fabricação de nossos projetos literários – lá nos longes de uma Cataguases dos anos 1960. Uma amizade que se solidifica a cada minuto, que é também (evoé, Cassiano Ricardo!) “um século XX”, já devidamente extrapolada para este século XXI.
E conhecer o homem, o amigo Joaquim Branco, é conhecer um ser em toda a sua dignidade, um intelectual íntegro, é saber das “recusas” representadas por seus trabalhos – da qualidade, da coerência de sua obra que se perpetua em sua já longa trajetória. É saber de suas incursões pelos vários movimentos que foram surgindo – concretismo, práxis, poema processo, poema postal, poema visual – que demonstraram o poeta atento ao seu tempo.
E essa “curiosidade” – impressa na produção de poemas que remetem a esses movimentos,como os que se encontram em seu novo livro, com suas artesanias & artimanhas de expressiva visualidade – me faz lembrar as investidas do citado Cassiano: exatamente como o Joaquim de hoje, um poeta já de “longo curso”, que também participou ativamente dos movimentos da poesia concreta e da poesia práxis, antes de criar os seus linossignos.
“Refugiados”revela novíssimos poemas, grande parte escritos em 2017, e traz uma bela capa idealizada pela filha do poeta, Natália Tinoco – que imprimiu ótimo tratamento na foto dos refugiados, alguma coisa meio “flou”, impressionante, como se suas almas pairassem sobre eles. O livro demonstra mais uma vez a vitalidade de Joaquim Branco – a quase magia de perpassar pelos vários momentos atravessados pela vanguarda nas últimas décadas sem perder a autenticidade, sem se deixar levar por aqueles falsos criadores de meras cópias, de simples pastiches.
Esses poemas, como sempre tonificados por instigantes pedras-de-toque, têm sua marca, sua assinatura, essa dicção própria e sempre inovadora que há muito tempo me fascina. Às vezes seus versos brancos e livres podem nos lembrar alguma coisa dos primórdios do modernismo, mas logo percebemos terem a chancela inconfundível dos versos “branco Joaquim”, articulados por harmônicos enjambements.
Em 1939, ao perder seu grande amigo, o poeta inglês W.H. Auden escreveu Funeral Blues, uma das mais belas elegias de todos os tempos, que ficou mais conhecida pelo filme “Quatro Casamentos e um Funeral”. Na ótima tradução de Nelson Ascher, transcrevo os dois derradeiros quartetos, e logo digo o porquê: “Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto/viveu, meus dias úteis, meu fim-de-semana,/ meu meio-dia, meia-noite, fala e canto;/ quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.// É hora de apagar estrelas — são molestas —/guardar a lua, desmontar o sol brilhante,/de despejar o mar, jogar fora as florestas,/pois nada mais há de dar certo doravante”.
E agora sim, o porquê da citação de Funeral Blues: em 2014, Joaquim Branco perde sua esposa e logo escreve uma também pungente elegia, “Folhas Caídas”, que se encontra nesse livro “Refugiados”. Ele parte da canção popular “Se essa rua fosse minha”, mas inverte o sentido satírico, parodístico, produzindo versos de extrema delicadeza, de intensa comoção. Um poema pautado pela perda, mas que não acena para “apagar estrelas” como o de Auden – antes sinaliza para o súbito acender de uma nova estrela, pelo ascender da amada que partiu. Termino com esse tocante poema de Joaquim Branco para Sonia Regina, comovido como da primeira vez que o li:
FOLHAS CAÍDAS
Na via-crucis desta rua
mora um anjo que se chama Sonidão.
Se eu pudesse eu mandava ladrilhar
seus passos para que ficassem
na terra que os viu passar.
Na via-láctea do sonho, uma estrela
no céu da tarde se fez
além de Órion
e vai brilhar pela primeira vez
no voo orbital do Sol.
Na via-férrea deste outono
– entre folhas caídas –
uma entre mil outras renasce,
como se o céu se abrisse
para não deixá-la cair
(injustamente)
para sempre
na impossibilidade
do não-ser.
Cataguases, 09.08.17
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