No 1º tomo de Relíquias de casa velha, Machado de Assis reuniu contos da linha clássica de sua criação ficcional como "Pai contra mãe", "Suje-se gordo", "Anedota do cabriolé" e outros.
Há nesses contos
famosas marcas machadianas, como a presença da personagem viúva – bonita e
rodeada pelos pretendentes –, dândis do século XIX – jovens e senhores que
viviam de heranças como ela e que certamente não trabalhavam. Na outra ponta, os
serviçais: escravos que aparecem aqui e ali, entrando e saindo de cena, quase
invisíveis para compor o ambiente urbano, como em outras obras de temática
rural.
O conto "Marcha
fúnebre", um dos melhores da antologia, cujo protagonista é o deputado Cordovil,
passa-se na década de 60 do oitocentismo e fala sobre um homem solitário
e suas esquisitices, entre elas a fixação do pensamento na morte.
Nas idas e vindas com que
Machado estrutura a narrativa, o personagem Cordovil vai imaginando para si as
inúmeras maneiras como as pessoas morrem. Mortes ruins, sofridas, outras
rápidas talvez sem dor, ainda outras depois de ameaças e violência etc. Mas, na
cena que antecede o final e que registra a hora de dormir do personagem, o
autor caprichou ainda mais: é de uma beleza textual que merece ser reproduzida pelo
uso de uma linguagem muito refinada. Vejam como Machado descreve aquela
penumbra que antecede o sono:
"Ah! foi então que
o sono tentou entrar, calado e surdo, todo cautelas, como seria a morte, se
quisesse levá-lo de repente, para nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com
força, e fez mal, porque a força acentuou a vontade que tinha de dormir; cuidou
de os afrouxar, e fez bem. O sono, passando-lhe aqueles braços leves e pesados,
a um tempo, que tiram à pessoa todo o movimento. Cordovil os sentia, e com os
seus quis conchegá-los ainda mais... A imagem não é boa, mas não tenho outra à
mão nem tempo de ir buscá-la. Digo só o resultado do gesto, que foi arredar o
sono de si, tão aborrecido ficou este reformador de cansados." (p. 48)
Repare o leitor como
Machado avalia que romantizou demais as imagens do sono de que estava tratando
e acaba se autocriticando ao dizer que "a imagem não é boa". No
entanto, a imagem é boa, aliás, é ótima, um verdadeiro rendado tecido com a
linguagem.
O último tipo de morte
lembrado por Cordovil foi aquela em que a pessoa deita, dorme e amanhece morto.
Mas ele não iria morrer naquela noite... Assim Machado de Assis finaliza a
estória de modo magistral:
"Quando veio a
falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a
morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado
em outra: a borra iria para o cemitério. Agora é que lhe via a filosofia; em
ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e
pingado para a segunda. Morte súbita não acabava de entender o que era."
(p. 49)
(ASSIS, Machado de.
Marcha fúnebre. In: ______. Relíquias de casa velha, tomo I, São
Paulo: Edigraf, p. 43-49).
(30-12-2013)